Olá colegas,
Uma boa dica para quem não quer perder tempo no ônibus. Audiobooks que podem ser baixados no celular. Não dispensam a leitura da obra, é um reforço.
Crítica da Razão Pura - KANT - audiobook.
Abraços.
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
domingo, 20 de setembro de 2009
O eu, o outro e a inveja
A fim de incentivar a exploração de uma perspectiva da crítica literária que tanto interessa ao nosso grupo, tentarei tecer algumas considerações sobre o belo poema de Neruda, recitado e postado por Rosângela. Pode-se dizer que o narrador (a "voz" ou o "eu") do poema expressa, em relação a certo "camarada", um rico complexo de vivências, que vai do sentimento de inveja ao de extremo abandono, passando por um tortuoso caminho de auto-conhecimento. Sugiro que sigamos rapidamente algumas linhas de suas quatro densas estrofes. 1) Na primeira estrofe, conta o narrador que um camarada seu - 'camarada' é sempre um companheiro ou amigo - "voltou" a dar-lhe a "velha inveja", que ele identifica ao "peso" de sua própria "substância intransferível". A inveja aparece como "dada" pelo outro a alguém que, passivamente, a sente. 2) No início da segunda estrofe, as frases "assaltei-te a mim, assalta-me a ti" apresentam um rico jogo de inversões entre sujeito e objeto, e entre passivo e ativo, no entrecruzado movimento de um "frio punhal" que "dessangra", ao evidenciar a "insuficiência" e a mudança enviesada de si "pelo outros". Contrução heterônoma de si - "queres construir-te com aquilo que queres e não és" - pois o que se quer está fora de si mesmo. 3) Na mais longa estrofe, a terceira, o camarada é o "antigo de rosto", ao qual se liga certos sinais dos tempos: vestígios, cinzas, cicatrizes, velhos olhos, mãos enrugadas e velhas. Mas também ao qual se vinculam qualidades de "guerreiro", os verdadeiros objetos do desejo: a "segurança independente" e a "espada do orgulho". O narrador confessa querer o que ele não é, sugerindo que o "pior" de si - que segue sempre lhe habitando - é precisamente o que ele é. 4) Mas, o "camarada" esteve somente de passagem: bebeu, falou, e se foi, levando aquilo que o eu que narra queria ser. Os últimos versos sugerem que "talvez" o "outro" tenha ido também melancólico, caso aconteça que ele queira, por seu turno, ser o eu que agora fica - o que equivale a estender ao outro o próprio sentimento de inveja. Se tais análises se sustentam, pode-se rematar dizendo que se trata de um poema que tematiza o desencontro humano que nasce com a inveja. Tomás de Aquino disse que a inveja é a tristeza em relação às coisas boas dos outros. E Espinosa considerava a inveja como a pior de todas as paixões. O poema de Neruda expressa um profundo desencontro do eu consigo mesmo e com o outro, mesmo que se tratando de antigos camaradas. Salta do poema, uma condição paradoxal do querer humano. Algo como uns "olhos miseráveis" que teimam em não querer a si próprio e, com isso, também não querer ao outro como o diferente de si. Pois o outro, como uma espécie de prolongamento negativo, não passa da representação do que faz falta a si. Tem-se uma "substância intransferível" e, ao mesmo tempo, o desejo de uma impossível transferência. Ora, se querer o que o outro é, para si, for o mesmo que não querer a si, nem ao outro, então, vive-se no regime de uma vontade agudamente infeliz, onde a inveja se revela, afinal, como o oposto do amor - de si e do outro. Sílvia Faustino.
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sexta-feira, 18 de setembro de 2009
O outro
Ontem meu camarada
nervoso, insigne, íntegro,
voltou-me a dar a velha inveja, o peso
de minha própria substância intransferível.
Assaltei-te a mim, assalta-me
a ti, este frio de punhal
quando te mudaria pelos outros,
quando tua insuficiência se dessangra
dentro de ti como uma veia aberta
e queres construir-te mais uma vez
com aquilo que queres e não és.
Meu camarada, antigo
de rosto como vestígio de vulcão,
cinzas, cicatrizes
junto aos velhos olhos candentes:
(lâmpadas de seu próprio subterrâneo),
enrugadas as mãos
que acariciarão o fulgor do mundo
e uma segurança independente,
a espada do orgulho
nessas velhas mãos de guerreiro.
Talvez seja isso o que eu queria
como destino, aquele
que não sou eu, porque
constantemente mudamos de sol,
de casa, de país, de chuva, de ares
de livro e traje,
e o pior de mim segue me habitando,
continuo com aquilo que sou até a morte?
Meu camarada, então,
bebeu em minha mesa, falou, quiçá, ou teve
alguma de suas dúvidas
duras como relâmpagos
e se foi aos seus deveres, a sua casa,
levando aquilo que eu quis ser
e talvez melancólico
por não ser eu, por não ter os meus olhos,
meus olhos miseráveis.
Poesia extraída do livro: Defeitos Escolhidos & 2000
Autor: Pablo Neruda
Páginas: 17 e 19
Editora: L&PM
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nervoso, insigne, íntegro,
voltou-me a dar a velha inveja, o peso
de minha própria substância intransferível.
Assaltei-te a mim, assalta-me
a ti, este frio de punhal
quando te mudaria pelos outros,
quando tua insuficiência se dessangra
dentro de ti como uma veia aberta
e queres construir-te mais uma vez
com aquilo que queres e não és.
Meu camarada, antigo
de rosto como vestígio de vulcão,
cinzas, cicatrizes
junto aos velhos olhos candentes:
(lâmpadas de seu próprio subterrâneo),
enrugadas as mãos
que acariciarão o fulgor do mundo
e uma segurança independente,
a espada do orgulho
nessas velhas mãos de guerreiro.
Talvez seja isso o que eu queria
como destino, aquele
que não sou eu, porque
constantemente mudamos de sol,
de casa, de país, de chuva, de ares
de livro e traje,
e o pior de mim segue me habitando,
continuo com aquilo que sou até a morte?
Meu camarada, então,
bebeu em minha mesa, falou, quiçá, ou teve
alguma de suas dúvidas
duras como relâmpagos
e se foi aos seus deveres, a sua casa,
levando aquilo que eu quis ser
e talvez melancólico
por não ser eu, por não ter os meus olhos,
meus olhos miseráveis.
Poesia extraída do livro: Defeitos Escolhidos & 2000
Autor: Pablo Neruda
Páginas: 17 e 19
Editora: L&PM
quarta-feira, 2 de setembro de 2009
Elogio
Antes de tudo o elogio. Só a Profª Silvia para trazer essa novidade do interlúdio poético ao final dos encontros. Parabéns, profª, grande idéia! Já que falamos em estética e em literatura, seguem algumas linhas, que encontrei na internet, para compartilhar com os colegas(http://almaacreana.blogspot.com/2009/06/richard-rorty-filosofo-da-cultura.html):
“(...) Por sua vez, a literatura tem desempenhado um papel imprescindível para a reflexão moral. Para Rorty, a literatura, e não a filosofia é a única capaz de promover a verdadeira noção de solidariedade humana, pois as palavras de romancistas como George Orwell e Vladimir Nabokov foram mais eficazes na tentativa de nos sensibilizar diante da crueldade que as indagações de inúmeros filósofos. Ele afirma que narrativas dramáticas podem muito bem ser essenciais para a escrita da história intelectual. Em vez do filósofo, Rorty pensa no romancista como aquele capaz de nos sensibilizar para os casos de crueldade e humilhação que muitas vezes não percebemos.”
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“(...) Por sua vez, a literatura tem desempenhado um papel imprescindível para a reflexão moral. Para Rorty, a literatura, e não a filosofia é a única capaz de promover a verdadeira noção de solidariedade humana, pois as palavras de romancistas como George Orwell e Vladimir Nabokov foram mais eficazes na tentativa de nos sensibilizar diante da crueldade que as indagações de inúmeros filósofos. Ele afirma que narrativas dramáticas podem muito bem ser essenciais para a escrita da história intelectual. Em vez do filósofo, Rorty pensa no romancista como aquele capaz de nos sensibilizar para os casos de crueldade e humilhação que muitas vezes não percebemos.”
sexta-feira, 28 de agosto de 2009
Poema do Pessoa
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente, fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo o correr do rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbulo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio.
Pagã triste e com flores no regaço.
(12/06/1914)
Sossegadamente, fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo o correr do rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbulo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio.
Pagã triste e com flores no regaço.
(12/06/1914)
domingo, 23 de agosto de 2009
Tentando responder a Djalma
O que significaria ver Kant como um "Hume prussiano"? Penso que "Hume" designa, sem maiores problemas, "empirismo", no sentido epistemológico clássico e lockeano da palavra: uma concepção de que o conhecimento humano começa (e se fundamenta) na experiência sensível. Mas, o que designaria "prussiano"? O antigo Reino da Prússia, situado no extremo leste alemão, se encontra, hoje, dividido entre a Polônia, a Lituânia e a Rússia. A cidade de Königsberg, onde Kant nasceu, viveu e morreu, é a atual Kaliningrado, uma cidade da Rússia. Pode ser que "prussiano" designe "linha dura" de certo "protestantismo prussiano", no qual Kant foi educado... Mas, neste sentido, Kant seria um "empirista prostestante de linha dura"? Enfim, como não consigo imaginar um "prussiano prostestante" defendendo a força das sensações e dos sentidos, um "Hume prussiano" afigura-se-me assim como uma espécie de oxímoro (rs rs). Quanto a ser Kant um idealista no sentido berkeleyano da palavra, não fica mais fácil explicar. O idealismo de Berkeley, elogiado por Schopenhauer (com a forte tese do véu de Maya, já comentado neste blog) consiste, grossíssimo modo, na defesa do slogan "esse is percipi", ou seja "ser é ser percebido". Pois bem: para Kant também, senão o "ser" (já que ele é crítico da ontologia), pelo menos os "fenômenos" (contrapostos à coisa em si) são sempre "percebidos". Ocorre que a percepção, para Kant, é entendida como uma "sensibilidade transcendental", cujas formas puras são o espaço e o tempo, que são as formas da sensibilidade humana. E, para Berkeley, Deus também (ou, principalmente) percebe. Para Berkeley, o que é perceptível inclui o que percebemos e o que Deus percebe. E nisso, Kant não segue Berkeley, pois, para Kant, a intuição sensível é humana, somente humana, embora não "demasiado humana", como diria Nietzsche. Sílvia Faustino.
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sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Na leitura do prefácio da Crítica da Razão Pura, surgiu-me uma curiosidade que persiste. Diz o texto que, com a obra, Kant foi apontado por alguns como "Hume prussiano". Também que, "depois das recensões de Grave e de Feder, a doutrina na Crítica da Razão Pura [foi] identificada com o idealismo subjetivo de Berkeley". Acho que seria interessante saber os pormenores dessas comparações. (3ª página do prefácio)
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domingo, 16 de agosto de 2009
"Tempo narrado" e "tempo de narrar"
Em seu texto, Djalma identifica, no conto "Pai contra mãe", de Machado de Assis, certos aspectos gerais dos contos, que foram enfatizados por Julio Cortázar. Destes aspectos, vou destacar, para comentar livremente - e já sem remissões a Machado ou Cortázar -, apenas um: a questão do tempo nos contos. Benedito Nunes, em seu livro O tempo na narrativa, ensina que o tempo de uma narrativa só é mensurável sobre dois planos: o do discurso e o da história. Ou seja: o tempo deriva da relação entre o tempo de narrar (Erzählzeit) e o tempo narrado (erzählte Zeit), segundo distinção de Günther Muller. Assim, nos contos, o "recorte temporal" do tempo narrado é exigido também em função do tempo de narrar. Creio que essa equação explica também a relevância e a exigência da intensidade como elemento central dos contos. No entanto, há muito a se esclarecer acerca do "tempo narrado" e do "tempo de narrar" - pois, certamente, nem o primeiro se esgota no tempo cronológico dos fatos contados, nem o segundo se identifica ao ponto de vista estrito do narrador. Mas, além disso, aparece no texto de Djalma, uma concepção que poderíamos pôr em nosso horizonte para refletir e explorar: por que a poesia é atemporal? Em que sentido o tempo comparece nos poemas? São questões interessantes para se pensar. Abraços! Sílvia Faustino.
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terça-feira, 11 de agosto de 2009
Machado em Cortázar
Machado em Cortázar
(Apreciação do conto “Pai contra mãe” em face das idéias de Julio Cortázar)
Djalma Jacobina Neto
Machado de Assis é apreciado como um mestre contista do estilo clássico, como quer Hélio Pólvora. Ele segue, de uma maneira geral, esse padrão no que diz respeito ao ponto de vista (point of view), conflito de personagem (character conflit), problema decisão entre tantas outras regras das muitas elencadas por Pólvora em sua obra “Itinerários do Conto” no capítulo “Da arte e do estilo do conto”.
Mas não é com base nesse texto que teceremos algum comentário sobre a contística de Machado; tampouco será abordada toda sua obra. A apreciação será tão somente sobre alguns aspectos do conto Machadiano “Pai Contra Mãe” publicado no livro “Relíquias da Casa Velha” do mesmo autor, em confronto com o que escreveu Júlio Cortazar no capítulo “Alguns aspectos do conto” de sua obra “Valise de Cronópio”.
Cortázar, em seu texto, não fala sobre contos clássicos; aborda, pelo contrário, a versão mais contemporânea desse gênero. A confrontação de alguns aspectos por ele citados, com a escrita clássica de Machado, poderá mostrar as diferenças e semelhanças entre o quê, regra geral, se fazia no passado e o que se faz atualmente no universo dos contos.
De início, Cortázar fala de sua preferência pessoal que é o conto fantástico, subgênero da maioria de seus contos, e de sua confrontação com a realidade. Ele esclarece que tal estilo se opõe “ao falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo filosófico e científico do séc. XVIII”, isto é, ao que se conhece como “princípio da causalidade”. O conto de Machado vai, nesse aspecto, em sentido oposto, ou seja, é claramente tributário desse princípio, como se vê, por exemplo, nas escolhas feitas pelas personagens e suas posteriores conseqüências.
No seu texto, Cortázar, ao falar sobre o gênero conto, faz uma interessante aproximação desse com a poesia, ao declará-lo seu “irmão misterioso(...) em outra dimensão do tempo literário”. No texto de Machado, vemos isso em várias figuras de linguagem que buscam por imagens. Logo no início, há a passagem da justificativa do sentimento de propriedade que moderava a punição do escravo fujão: “dinheiro também dói”. Outras passagens seguem no mesmo sentido, como, por exemplo, ao citar os nomes dos protagonistas “Clara”, “Neves” e “Cândido” sugestivos de certa ingenuidade das personagens, todos dados a risos frouxos, alegres e descompromissados em face da aridez da vida. Também o filho, enquanto ainda por nascer, “deixava-se estar escondido na eternidade”. A “outra dimensão do tempo literário”, a que se refere Cortazar, diz respeito a atemporalidade da poesia, em confronto com uma possível datação devido ao “recorte” temporal exigido pelo conto. Machado não foge à regra; sua narrativa transcorre em um tempo certo, necessário á contextualização dos fatos.
Adiante, Cortázar faz a comparação do conto com uma fotografia. Da mesma forma que aquela, o conto também é, para ele, um fragmento da realidade “de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra (...) uma realidade muito mais ampla”. No conto em foco, Machado fez o referido recorte ao escolher um trecho vida de Cândido, com as desventuras de sua vida particular, para retratar um panorama muito mais significativo e amplo que é a crueldade da escravidão humana. É um tema que, em conformidade com o que ensina o comentador, é capaz “de atuar no (...) leitor como uma (...) abertura que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido (...) no conto”.
Cortázar faz ainda referência ao tema, à tensão e à intensidade de um conto. Quanto ao primeiro, ele entende que em literatura não há temas bons ou ruins, o que há são tratamentos bons ou ruins sobre esses. O tema da escravidão, por exemplo, é bastante corriqueiro, sobretudo na literatura da época machadiana. Lugares comuns e clichês abundam em obras que trataram do assunto. Machado foi sutil ao abordar essa temática por um viés completamente diverso do que era comum, com um episódio na vida de um “capitão de mato”. Além disso, adiante Cortázar afirma que “um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na sensibilidade”. Veja-se que em “Pai contra mãe”, aglutina-se em torno do tema valores como igualdade, família, justiça, dignidade humana. Mas há uma ressalva feita pelo crítico que, também, não foge a Machado. Ele afirma que há uma aliança misteriosa e complexa entre certo escritor e certo tema num momento dado; ainda, que a significação de um tema é dada por algo que está antes e depois dele (do tema). Antes está o próprio escritor com todos seus atributos; depois está o tratamento literário dado ao assunto. Assim é que, em face da chaga da escravidão, Machado se sensibiliza e a ele anexa a questão do amor filial, fazendo, com isso, um paralelo entre duas vidas humanas (a do capitão do mato e a da escrava) em níveis de dignidade absurdamente diferentes, para mostrar com mais crueza a mazela social a que se refere.
Ao abordar as idéias de tensão e intensidade, Cortázar adverte que estes tópicos permitem uma aproximação à própria estrutura dos contos. È aí que, segundo ele, “se produz a distinção entre o bom e mau contista”. A intensidade “consiste na eliminação de todas as idéias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige”. Quanto a isso, destaca Hélio Pólvora (O itinerário do conto - Da arte e estilo do conto) que no conto deve-se dar preferência a mostrar a ação do que a narrá-la. A concisão de linguagem deve ser um atributo de um bom conto. No conto em tela, de Machado, um bom exemplo disso é a forma que foi descrita a relação de Cândido com suas diversas atividades profissionais; o autor não gastou mais que um curto parágrafo para esse fim.
Já a tensão “é uma intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor vai nos aproximando lentamente do que conta”. A intensidade e a tensão formam o que Cortázar chama de “ofício de escritor”. Isso, segundo o crítico, é o que faz de um conto uma obra de arte. Por isso é que para ele um bom conto depende, além do fervor e da vontade de comunicar a mensagem, também de elementos expressivos, estilísticos que tornam possível essa comunicação. Nisso Machado foi um mestre, como se sabe.
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro: Ed. Garnier, 1990, pp.17-27.
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de cronópio. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974, pp. 147-163.
PÓLVORA, Hélio. Itinerário do Conto: Interfaces Críticas e Teóricas da Moderna Short Story, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia, 2002.
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(Apreciação do conto “Pai contra mãe” em face das idéias de Julio Cortázar)
Djalma Jacobina Neto
Machado de Assis é apreciado como um mestre contista do estilo clássico, como quer Hélio Pólvora. Ele segue, de uma maneira geral, esse padrão no que diz respeito ao ponto de vista (point of view), conflito de personagem (character conflit), problema decisão entre tantas outras regras das muitas elencadas por Pólvora em sua obra “Itinerários do Conto” no capítulo “Da arte e do estilo do conto”.
Mas não é com base nesse texto que teceremos algum comentário sobre a contística de Machado; tampouco será abordada toda sua obra. A apreciação será tão somente sobre alguns aspectos do conto Machadiano “Pai Contra Mãe” publicado no livro “Relíquias da Casa Velha” do mesmo autor, em confronto com o que escreveu Júlio Cortazar no capítulo “Alguns aspectos do conto” de sua obra “Valise de Cronópio”.
Cortázar, em seu texto, não fala sobre contos clássicos; aborda, pelo contrário, a versão mais contemporânea desse gênero. A confrontação de alguns aspectos por ele citados, com a escrita clássica de Machado, poderá mostrar as diferenças e semelhanças entre o quê, regra geral, se fazia no passado e o que se faz atualmente no universo dos contos.
De início, Cortázar fala de sua preferência pessoal que é o conto fantástico, subgênero da maioria de seus contos, e de sua confrontação com a realidade. Ele esclarece que tal estilo se opõe “ao falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo filosófico e científico do séc. XVIII”, isto é, ao que se conhece como “princípio da causalidade”. O conto de Machado vai, nesse aspecto, em sentido oposto, ou seja, é claramente tributário desse princípio, como se vê, por exemplo, nas escolhas feitas pelas personagens e suas posteriores conseqüências.
No seu texto, Cortázar, ao falar sobre o gênero conto, faz uma interessante aproximação desse com a poesia, ao declará-lo seu “irmão misterioso(...) em outra dimensão do tempo literário”. No texto de Machado, vemos isso em várias figuras de linguagem que buscam por imagens. Logo no início, há a passagem da justificativa do sentimento de propriedade que moderava a punição do escravo fujão: “dinheiro também dói”. Outras passagens seguem no mesmo sentido, como, por exemplo, ao citar os nomes dos protagonistas “Clara”, “Neves” e “Cândido” sugestivos de certa ingenuidade das personagens, todos dados a risos frouxos, alegres e descompromissados em face da aridez da vida. Também o filho, enquanto ainda por nascer, “deixava-se estar escondido na eternidade”. A “outra dimensão do tempo literário”, a que se refere Cortazar, diz respeito a atemporalidade da poesia, em confronto com uma possível datação devido ao “recorte” temporal exigido pelo conto. Machado não foge à regra; sua narrativa transcorre em um tempo certo, necessário á contextualização dos fatos.
Adiante, Cortázar faz a comparação do conto com uma fotografia. Da mesma forma que aquela, o conto também é, para ele, um fragmento da realidade “de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra (...) uma realidade muito mais ampla”. No conto em foco, Machado fez o referido recorte ao escolher um trecho vida de Cândido, com as desventuras de sua vida particular, para retratar um panorama muito mais significativo e amplo que é a crueldade da escravidão humana. É um tema que, em conformidade com o que ensina o comentador, é capaz “de atuar no (...) leitor como uma (...) abertura que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido (...) no conto”.
Cortázar faz ainda referência ao tema, à tensão e à intensidade de um conto. Quanto ao primeiro, ele entende que em literatura não há temas bons ou ruins, o que há são tratamentos bons ou ruins sobre esses. O tema da escravidão, por exemplo, é bastante corriqueiro, sobretudo na literatura da época machadiana. Lugares comuns e clichês abundam em obras que trataram do assunto. Machado foi sutil ao abordar essa temática por um viés completamente diverso do que era comum, com um episódio na vida de um “capitão de mato”. Além disso, adiante Cortázar afirma que “um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na sensibilidade”. Veja-se que em “Pai contra mãe”, aglutina-se em torno do tema valores como igualdade, família, justiça, dignidade humana. Mas há uma ressalva feita pelo crítico que, também, não foge a Machado. Ele afirma que há uma aliança misteriosa e complexa entre certo escritor e certo tema num momento dado; ainda, que a significação de um tema é dada por algo que está antes e depois dele (do tema). Antes está o próprio escritor com todos seus atributos; depois está o tratamento literário dado ao assunto. Assim é que, em face da chaga da escravidão, Machado se sensibiliza e a ele anexa a questão do amor filial, fazendo, com isso, um paralelo entre duas vidas humanas (a do capitão do mato e a da escrava) em níveis de dignidade absurdamente diferentes, para mostrar com mais crueza a mazela social a que se refere.
Ao abordar as idéias de tensão e intensidade, Cortázar adverte que estes tópicos permitem uma aproximação à própria estrutura dos contos. È aí que, segundo ele, “se produz a distinção entre o bom e mau contista”. A intensidade “consiste na eliminação de todas as idéias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige”. Quanto a isso, destaca Hélio Pólvora (O itinerário do conto - Da arte e estilo do conto) que no conto deve-se dar preferência a mostrar a ação do que a narrá-la. A concisão de linguagem deve ser um atributo de um bom conto. No conto em tela, de Machado, um bom exemplo disso é a forma que foi descrita a relação de Cândido com suas diversas atividades profissionais; o autor não gastou mais que um curto parágrafo para esse fim.
Já a tensão “é uma intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor vai nos aproximando lentamente do que conta”. A intensidade e a tensão formam o que Cortázar chama de “ofício de escritor”. Isso, segundo o crítico, é o que faz de um conto uma obra de arte. Por isso é que para ele um bom conto depende, além do fervor e da vontade de comunicar a mensagem, também de elementos expressivos, estilísticos que tornam possível essa comunicação. Nisso Machado foi um mestre, como se sabe.
Bibliografia:
ASSIS, Machado de. Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro: Ed. Garnier, 1990, pp.17-27.
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de cronópio. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974, pp. 147-163.
PÓLVORA, Hélio. Itinerário do Conto: Interfaces Críticas e Teóricas da Moderna Short Story, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia, 2002.
sábado, 18 de julho de 2009
Schopenhauer & hinduísmo
Querida Rosângela! Por ter reconhecido as raízes hindus em seu pensamento, Schopenhauer se distancia (de maneira salutar, a meu ver) daquele estilo de filósofo que descuida ou despreza o lado místico da racionalidade humana. Reconhecer os ensinamentos dos "Upanishades" ao lado dos de Kant significa, por outro lado, que a herança kantiana deve ser compartilhada com os pricípios da filosofia hindu - algo que muitos afirmam, mas poucos aprofundam. Depois de ler a sua postagem, me parece claro que a apropriação conceitual que Schopenhauer faz do idealismo transcendental kantiano, tão visível no pensamento do "mundo como representação", precisa ser investigada levando sempre isso em conta. A própria noção de representação talvez não possa ser desvinculada, de maneira rigorosa, da noção de "ilusão" - proveniente da analogia com o "véu de Maya" - e da consideração dessa "causa" externa ao seu domínio. Pareceu-me muito pertinente esse traço do niilismo schopenhaueriano: o fato de não ser cristão não implica que ele não tenha, a seu modo, assumido e incorporado um lado místico. Agora, um problema interessante talvez seja o de investigar até que ponto um filósofo do ocidente consegue converter em "conceito", elementos culturais tão desconhecidos por nós como, por exemplo, os "mantras". Esses elementos da filosofia (ou religião?) hindu têm certos poderes que extrapolam a nossa maneira de trabalhar conceitos. Entraríamos, aí, num campo fascinante de discussão, que trataria de como a filosofia ocidental, que se auto-define como uma investigação de conceitos, pode incorporar o oriente e seus ensinamentos, sem perder a sua "aura" propriamente mística.
Grande abraço, Sílvia Faustino.
Grande abraço, Sílvia Faustino.
sexta-feira, 17 de julho de 2009
POR QUE NARRADOR PÓS-MODERNO?
Ensaio
Versão em WORD você consegue no link:
http://www.4shared.com/file/118848180/29a716d7/por_que_narrador_ps_moderno.html
Autor: Djalma Jacobina Neto
Julho 2009
Para Walter Benjamin[1] o ato de narrar está em vias de extinção. Para ele, são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Isso se dá, segundo o pensador, pela crescente dificuldade de intercambiar experiências: “as ações da experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. Disso resulta que “a sabedoria – lado épico da verdade – está em extinção”.
Ainda para Benjamin, o surgimento do romance, no início do período moderno, é o primeiro indício da decadência pretendida. Sua origem é o indivíduo isolado, que não recebe mais conselhos nem sabe dá-los. Não há aí a menor centelha de sabedoria. Uma das razões disso é que ele está essencialmente ligado ao livro, ou seja, à palavra escrita. O romance, portanto, nem procede da tradição oral nem a alimenta, o que o faz diferir, em essência, do narrador, que retira de sua experiência o que conta: “sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”[2].
No tocante à informação, o autor mostra que a situação é ainda mais extrema. Pois que, também, estranha à narrativa, provoca crise até mesmo no romance. Na informação não há a imersão dos fatos em quem conta, para que seja recontado com a coloração da experiência pessoal. Também não há a preocupação com valores perenes. O contado tem valor mais imediato. Nela não há o surpreendente - como deve ocorrer na narrativa -, os fatos já chegam explicados.
Esclarece o autor que uma das razões da tamanha disparidade entre os estilos, do que decorre a decadência em comento, é que “metade da arte narrativa está em evitar explicações”. Há ainda outros fatores, como a necessidade contemporânea de tudo abreviar; o enfraquecimento da idéia de eternidade; a perda da força evocativa da morte.
Ainda mais, Benjamin vê na reminiscência o fundamento da cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela “tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si”[3]. A memória se apresenta, assim, como a musa da narrativa; como a rememoração diz respeito ao romance “depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência”[4]. Há diferenças substanciais entre as duas. A musa do narrador é breve, consagrada a um herói, uma batalha; a do romance dedica-se a muitos fatos difusos.
Por fim, o romance é centrado na busca de um “sentido da vida”; enquanto que a narrativa épica lastreia-se na “moral da história” [5].
Com base nessas colocações, Silviano Santiago escreveu sobre o narrador pós-moderno. Em seu texto, ele não se restringe à proposta de Walter Benjamin de aplicar o conceito de narrador a apenas uma situação. Para ele, há três tipos que representam estágios evolutivos[6]. De início, o clássico, para o qual há a necessidade de intercâmbio de experiências; segundo, o narrador de romance que não fala de forma exemplar; e, por fim, o narrador jornalista que transmite a informação e não narra a própria experiência.
É com base nesse apanhado que Silviano apresenta um quarto tipo, o narrador pós-moderno, protagonista de seu texto. Este, diferentemente do clássico, transmite uma “sabedoria” decorrente da observação de uma vivência alheia. A autenticidade, nesse caso, não provém da vivência do ocorrido, mas da verossimilhança, calcada na lógica interna do relato. O narrador pós-moderno de Santiago se aproxima, assim, do que ele tem por narrador jornalista.
A tese que sustenta Silviano é que a forma pós-moderna de narrar é encarada por outra perspectiva. É como se o narrador dissesse: “deixai-me olhar para que você, leitor, também possa ver”[7]. O que se valoriza, aí, é o olhar. A experiência é de pouca valia. Donde conclui que “a ação pós-moderna é jovem, inexperiente, exclusiva, privada de palavra”[8]. O narrador sabe que tem a palavra onde ninguém mais a tem, todavia, sabe também que sua palavra não tem mais utilidade, daí o foco do olhar e da palavra sobre aqueles que não a tem.
Assim, o narrador pós-moderno observa para contar o que vê sem se preocupar em dar conselhos. Silviano expõe a incomunicabilidade de experiências entre gerações, o que traz a “impossibilidade da continuidade linear ao processo de aprimoramento do homem e da sociedade”[9].
Diante disso, a narrativa se volta para falar da pobreza de experiência e também da impropriedade da palavra escrita como processo de comunicação.
Nesse contexto, Silviano coloca a pergunta: por que se olha?[10] Ao que responde, baseado em Nathalie Sarraute, que se olha da mesma forma que a planta se volta para o Sol no fototropismo. Segundo ele, o Sol é mais jovem, a planta mais experiente. Adiante, acrescenta que em termos apocalípticos olha-se para se dar razão e finalidade à vida. Mas será que é só isso? A rigor não é nem isso. Transposto para a experiência humana a imagem há de ser invertida; o Sol é representado pelo mais jovem, que irradia calor, transmite energia e tonifica a velha planta. Não há, portanto, evidência para a razão e finalidade do olhar. O narrador olha, o personagem é olhado, assim discorre o conto analisado por Silviano, “mas ficam como enigma a razão e a finalidade desse olhar”[11].
A ficção de Edilberto é desenvolvida em cima desse mistério, é o que afirma Silviano. Mas não é nessa direção que queremos apresentar nosso raciocínio. O que tentamos como proposta de trabalho é uma breve análise da razão dessa guindada do foco narrativo, que parte do narrador clássico e faz um percurso, segundo Silviano, evolutivo, passando pelo narrador do romance até chegar ao pós-moderno, sob a ótica da concepção do sujeito.
Para chegarmos a um bom termo neste trabalho é necessário que façamos uma retrospectiva de alguns aspectos do narrador clássico, de Walter Benjamin. Nele há a narrativa a partir da ação e da memória. Ou seja, o narrador se apropria do que conhece da tradição e mescla esse conhecimento com sua própria experiência. Nesse momento, fala-se de autenticidade. Conta-se o que se viveu para se atualizar a sabedoria e produzir bons conselhos de vida.
Na hipótese do narrador pós-moderno, de Silviano Santiago, o que é valorizado é o olhar para o outro. Olha-se para quem não sabe narrar; para o jovem que vive o momento, e se aprecia o seu viver, sem a pretensão de aconselhar.
Se não podemos negar que as diferenças entre os dois conceitos extremos saltam aos olhos; também,não podemos deixar de observar que entre os dois há um importante ponto de convergência. Em ambos existe alguém olhando com o intuito de narrar, ainda que, como visto, essas narrativas tenham objetivos diferentes.
Nesse ponto, essa primeira análise abre um caminho luminoso para a questão que buscamos elucidar, que é a busca de uma explicação para a mudança do foco do olhar. A partir da primeira convergência chegamos à segunda. Devemos observar que em ambos os casos esse “alguém” que olha, mira, sempre, seu olhar em outro “alguém”. Ou seja, nas duas pontas há sujeitos. O primeiro é sempre o narrador; o segundo é sempre o narrado. Quando seu olhar se volta para suas próprias ações imersas na tradição, surge o narrador clássico, sábio, conselheiro; de modo diverso, quando a mirada é para um “outro” alguém, e não há a pretensão do conselho, fala-se no narrador pós-moderno.
No meio desse trajeto, há o narrador do romance que, como propõe Silviano Santiago, é aquele que se pretende isento sem sê-lo. É o solitário, que busca, com a narrativa, não a lição de moral, mas o sentido da vida. Nesse caso, seu olhar não consegue se libertar totalmente do ego forte. Ele se dirige para a personagem criada que, como coloca Silviano, não foge muito à situação primeira. Trata-se, portanto, de um meio termo entre o narrador clássico e o pós-moderno. Voltemos, então, às extremidades.
Neste momento, já podemos destacar elementos importantes em ambas as narrativas para nossa análise. Há “o sujeito que olha”, “o olhar”, “o outro que é olhado”, e “o objetivo do olhar”. “O sujeito que olha” é o narrador; “o outro” pode tanto ser o próprio narrador - imiscuído na tradição -, ou um terceiro; “o objetivo do olhar” tanto pode ser para atualização da tradição e produção de conselhos, ou para o mero deleite ou curiosidade. As variações, como visto, vão definir um tipo ou outro de narrador, como quer Silviano.
No trajeto em busca do deslinde de nossa questão, surge outra pergunta de fundamental importância para nosso desiderato: qual é o vínculo da narrativa com o narrador? A resposta a essa pergunta talvez nos esclareça qual é o interesse do indivíduo pelo que narra. Para Evelina Hoisel[12] a estrutura de uma obra é sempre a vida grafada. Citando Valéry ela afirma “o caráter eminentemente biográfico de qualquer objeto de conhecimento artístico ou científico”. E prossegue na citação: “na verdade, não existe teoria que não seja um fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia”[13]. Em vista disso, podemos acrescentar que o que se narra é, de alguma forma, a própria vida. E numa interpretação mais extensiva talvez se possa dizer que o narrador narra para, de alguma maneira, falar de si, tentar se encontrar, se conceber, como indivíduo em determinado contexto e lugar, sendo esse, ao que tudo indica, seu interesse.
Uma vez colocada a natureza do vínculo da narrativa com o narrador, que é a busca auto-concepção como indivíduo, chegamos a uma primeira pista para resolver nossa questão. A variação da qualidade da narrativa pode estar ligada à variação da concepção da identidade do sujeito ao longo da história. Vamos tentar prosseguir nesse caminho.
A noção do indivíduo, antes da modernidade, estava lastreada em apoios estáveis, em tradições e estruturas sociais rígidas. O “eterno” subsidiava o que não se entendia e dava estabilidade ao mundo. A soberania da pessoa era subalterna ao cosmos e moldada pelos arquétipos morais assentes.
Depois do humanismo renascentista do séc. XVI, que colocou o homem no centro do universo, até o iluminismo do séc. XVII, emergiu o indivíduo soberano sob a égide do logos. Houve aí uma importante ruptura com o passado.
Obviamente que a estrutura desse indivíduo não se formou de forma abrupta nem apresentou etapas estanques. O indivíduo moderno emergiu tendo como elemento centrador o cogito de Descartes. A partir dessa época, ele se libertou da medida da Igreja Católica com o protestantismo, e conquistou uma relação mais direta com Deus; decifrou mistérios da natureza com a ciência; cresceu com o iluminismo; fundou o estado liberal; voltou-se para o coletivo com as idéias socializantes.
Nessa oportunidade, o sujeito ainda era centrado, mas não mais ligado a um cosmos estruturante que tudo explicava pela fé e pela tradição. O logos dava estabilidade à vida. A ciência positiva ditava as normas. A filosofia iluminista elaborava argumentos de legitimação do Estado burguês.
Mas todo esse fervilhar de mudanças prosseguiu, e com ele a identidade do indivíduo. A sociologia trouxe críticas ao individualismo cartesiano. Surgiu a concepção alternativa da formação do indivíduo por meio de sua participação em relações sociais mais amplas. Ficou mais clara a forma de sustentação dos processos e estruturas sociais a partir do status quo. Houve, com isso, uma externalização do interior do indivíduo, e uma interiorização do exterior.
Este modelo sociológico foi produto do início do século XX. Pouco depois, tiveram inicio cinco grandes avanços na teoria social que foram fundamentais para o descentramento do sujeito cartesiano; foram elas: o marxismo em sua reinterpretação nos anos 60; a descoberta do inconsciente freudiano; Ferdinand Saussure com sua dicotomia entre língua e fala; a produção da “genealogia” do sujeito moderno por Foucault; o feminismo como crítica teórica e movimento social. Tudo isso, aliado às inovações tecnológicas, ao avanço do capitalismo selvagem com a supervalorização do consumo, aos meios de comunicação de massa, internet, celular, globalização de mercados - que levou ao enfraquecimento de fronteiras nacionais, formaram o berço do que se entende hoje por pós-modernismo. Essas mudanças tiveram o condão de fragmentar o sujeito, tirá-lo de suas certezas e acabar com sua unicidade “estável”.
Com base nessa contextualização, já se torna possível delinear um entendimento para a questão da explicação sobre a variação na forma de narrar.
Nos primórdios, calcado na estabilidade do Cosmos, o indivíduo ainda era muito submisso à tradição, às estruturas sociais rígidas. Devido a essa falta de soberania, ainda não se podia falar em “sujeito” como seria entendido mais tarde. Era o ambiente propício para um narrar atemporal, épico, arquetípico, que pregava a troca de experiência dos mais velhos, o reviver da tradição. Era o momento do narrador clássico que narrava para manter a tradição e dar conselhos ao “bom viver”.
O cogito cartesiano veio trazer outro paradigma ao indivíduo. O humanismo renascentista deslocou o foco do pensamento do cosmos para o logos. O homem passou a ser o centro do universo. Ascendeu a burguesia. A religião enfrentou crises. Surgiu o iluminismo com suas teses. O indivíduo foi “assujeitado” em um locus social e ganhou novas feições. O romance burguês ganhou força e, com ele e todo esse contexto, emergiu o narrador do romance. O sujeito, entretanto, persistiu centrado, agora, no cartesianismo.
Mas o pensamento continuou em sua efervescência e, com ele, seguiu a manifestação do indivíduo. As ciências sociais trouxeram sua contribuição. Paradigmas importantes fora suplantados. O capitalismo venceu seus opositores e expandiu o consumo de forma globalizada e avassaladora. A tecnologia da informacção e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa incrementaram a interação entre os povos; romperam-se fronteiras físicas e humanas antes inexpugnáveis. Dentro desse caldeirão borbulhante o sujeito se esfacelou. Perdeu seu centramento cartesiano. Valores destinados à produção, à ordem, passaram a ser questionados. Surgiu a idéia da polifonia do discurso. Passou-se a entender que não era o “eu” que dava sentido ao falar, como se entendia desde época do narrador clássico até a do romance. Surgiu o entendimento de que o sentido dependia do espaço interdiscussivo; ou seja, não só do “mesmo”, mas também do “outro”. O narrador teve, mais uma vez, de mudar de posição para buscar sua identidade em seu novo contexto. Voltou-se, assim, para o olhar do outro para se encontrar.
O outro aspecto referido à narrativa pós-moderna - o desinteresse pelo passado e pelo conselho -, decorre do próprio contexto libertário da pós-modernidade. Com o entendimento trazido pelas ciências sociais, do papel do indivíduo “assujeitado” para a manutenção de estruturas sociais injustas e pouco atraentes, o jogo tradicional passou a ficar desestimulante. Também, as “maravilhas” da contemporaneidade, bem representadas pelos cenários dos modernos shoppings, os sofisticados “vídeo-games” e toda o resto da parafernália tecnológica atual estruturam uma vida-espetáculo que ofuscam qualquer interesse pelo passado e pela experiência. Esses dois fatores trazem uma prática de vida que valoriza o carpe diem, ou seja, o viver o momento.
BIBLIOGRAFIA:
AMARAL, Sayonara. João Gilberto Noll: Narrativa pó-Moderna, Corpos pós-humanos. Disponível em : http://www.joaogilbertonoll.com.br/noll1.pdf.%20Acesso%20em%2030/05/2009.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 2ª ed. Rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004
FRANCO, Jefferson L. O lado Épico da Mentira. In: Crítica e alguma Teoria.Disponível em: www.scribd.com/doc/2599953/Critica-e-Alguma-Teoria. Acesso em 30/05/2009.
HOISEL, E. C. S. . Literatura e biografia: a trama das relações. In: Grande sertão:veredas - uma escritura biográfica. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2006. v. 1. 218 p.21-54.
LOPES, Silvana Mendonça. A identidade cultural na pós-modernidade. Webartigos.com. Disponível em:
http://www.webartigos.com/articles/12441/1/identidade-cultural-na-pos-modernidade/pagina1.html. Acesso em 17/06/2009.
SANTIAGO, Silviano. O narrador pó-moderno. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, s/d.
SANTOS, Jair Ferreira. O que é pós-modernismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
ANÔNIMO. A Página da Educação. Auto-determinação do Sujeito Pós-moderno. Disponível em http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=4529. Acesso em 30/05/2009.
[1]BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.p. 197.
[2] Idem. P. 201
[3] Ibidem. P.211.
[4] Ibidem. P. 211.
[5] Ibidem. P. 212.
[6] SANTIAGO, Silviano. O narrador pó-moderno.P.45.
[7] Idem. P. 52.
[8] Ibidem. P. 53.
[9] Ibidem. P. 54.
[10] Ibidem. P. 57.
[11] Ibidem. P. 57.
[12] HOISEL, E. C. S. . Literatura e biografia: a trama das relações., P.54.
[13] Idem. P.54.
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Autor: Djalma Jacobina Neto
Julho 2009
Para Walter Benjamin[1] o ato de narrar está em vias de extinção. Para ele, são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Isso se dá, segundo o pensador, pela crescente dificuldade de intercambiar experiências: “as ações da experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. Disso resulta que “a sabedoria – lado épico da verdade – está em extinção”.
Ainda para Benjamin, o surgimento do romance, no início do período moderno, é o primeiro indício da decadência pretendida. Sua origem é o indivíduo isolado, que não recebe mais conselhos nem sabe dá-los. Não há aí a menor centelha de sabedoria. Uma das razões disso é que ele está essencialmente ligado ao livro, ou seja, à palavra escrita. O romance, portanto, nem procede da tradição oral nem a alimenta, o que o faz diferir, em essência, do narrador, que retira de sua experiência o que conta: “sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”[2].
No tocante à informação, o autor mostra que a situação é ainda mais extrema. Pois que, também, estranha à narrativa, provoca crise até mesmo no romance. Na informação não há a imersão dos fatos em quem conta, para que seja recontado com a coloração da experiência pessoal. Também não há a preocupação com valores perenes. O contado tem valor mais imediato. Nela não há o surpreendente - como deve ocorrer na narrativa -, os fatos já chegam explicados.
Esclarece o autor que uma das razões da tamanha disparidade entre os estilos, do que decorre a decadência em comento, é que “metade da arte narrativa está em evitar explicações”. Há ainda outros fatores, como a necessidade contemporânea de tudo abreviar; o enfraquecimento da idéia de eternidade; a perda da força evocativa da morte.
Ainda mais, Benjamin vê na reminiscência o fundamento da cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela “tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si”[3]. A memória se apresenta, assim, como a musa da narrativa; como a rememoração diz respeito ao romance “depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência”[4]. Há diferenças substanciais entre as duas. A musa do narrador é breve, consagrada a um herói, uma batalha; a do romance dedica-se a muitos fatos difusos.
Por fim, o romance é centrado na busca de um “sentido da vida”; enquanto que a narrativa épica lastreia-se na “moral da história” [5].
Com base nessas colocações, Silviano Santiago escreveu sobre o narrador pós-moderno. Em seu texto, ele não se restringe à proposta de Walter Benjamin de aplicar o conceito de narrador a apenas uma situação. Para ele, há três tipos que representam estágios evolutivos[6]. De início, o clássico, para o qual há a necessidade de intercâmbio de experiências; segundo, o narrador de romance que não fala de forma exemplar; e, por fim, o narrador jornalista que transmite a informação e não narra a própria experiência.
É com base nesse apanhado que Silviano apresenta um quarto tipo, o narrador pós-moderno, protagonista de seu texto. Este, diferentemente do clássico, transmite uma “sabedoria” decorrente da observação de uma vivência alheia. A autenticidade, nesse caso, não provém da vivência do ocorrido, mas da verossimilhança, calcada na lógica interna do relato. O narrador pós-moderno de Santiago se aproxima, assim, do que ele tem por narrador jornalista.
A tese que sustenta Silviano é que a forma pós-moderna de narrar é encarada por outra perspectiva. É como se o narrador dissesse: “deixai-me olhar para que você, leitor, também possa ver”[7]. O que se valoriza, aí, é o olhar. A experiência é de pouca valia. Donde conclui que “a ação pós-moderna é jovem, inexperiente, exclusiva, privada de palavra”[8]. O narrador sabe que tem a palavra onde ninguém mais a tem, todavia, sabe também que sua palavra não tem mais utilidade, daí o foco do olhar e da palavra sobre aqueles que não a tem.
Assim, o narrador pós-moderno observa para contar o que vê sem se preocupar em dar conselhos. Silviano expõe a incomunicabilidade de experiências entre gerações, o que traz a “impossibilidade da continuidade linear ao processo de aprimoramento do homem e da sociedade”[9].
Diante disso, a narrativa se volta para falar da pobreza de experiência e também da impropriedade da palavra escrita como processo de comunicação.
Nesse contexto, Silviano coloca a pergunta: por que se olha?[10] Ao que responde, baseado em Nathalie Sarraute, que se olha da mesma forma que a planta se volta para o Sol no fototropismo. Segundo ele, o Sol é mais jovem, a planta mais experiente. Adiante, acrescenta que em termos apocalípticos olha-se para se dar razão e finalidade à vida. Mas será que é só isso? A rigor não é nem isso. Transposto para a experiência humana a imagem há de ser invertida; o Sol é representado pelo mais jovem, que irradia calor, transmite energia e tonifica a velha planta. Não há, portanto, evidência para a razão e finalidade do olhar. O narrador olha, o personagem é olhado, assim discorre o conto analisado por Silviano, “mas ficam como enigma a razão e a finalidade desse olhar”[11].
A ficção de Edilberto é desenvolvida em cima desse mistério, é o que afirma Silviano. Mas não é nessa direção que queremos apresentar nosso raciocínio. O que tentamos como proposta de trabalho é uma breve análise da razão dessa guindada do foco narrativo, que parte do narrador clássico e faz um percurso, segundo Silviano, evolutivo, passando pelo narrador do romance até chegar ao pós-moderno, sob a ótica da concepção do sujeito.
Para chegarmos a um bom termo neste trabalho é necessário que façamos uma retrospectiva de alguns aspectos do narrador clássico, de Walter Benjamin. Nele há a narrativa a partir da ação e da memória. Ou seja, o narrador se apropria do que conhece da tradição e mescla esse conhecimento com sua própria experiência. Nesse momento, fala-se de autenticidade. Conta-se o que se viveu para se atualizar a sabedoria e produzir bons conselhos de vida.
Na hipótese do narrador pós-moderno, de Silviano Santiago, o que é valorizado é o olhar para o outro. Olha-se para quem não sabe narrar; para o jovem que vive o momento, e se aprecia o seu viver, sem a pretensão de aconselhar.
Se não podemos negar que as diferenças entre os dois conceitos extremos saltam aos olhos; também,não podemos deixar de observar que entre os dois há um importante ponto de convergência. Em ambos existe alguém olhando com o intuito de narrar, ainda que, como visto, essas narrativas tenham objetivos diferentes.
Nesse ponto, essa primeira análise abre um caminho luminoso para a questão que buscamos elucidar, que é a busca de uma explicação para a mudança do foco do olhar. A partir da primeira convergência chegamos à segunda. Devemos observar que em ambos os casos esse “alguém” que olha, mira, sempre, seu olhar em outro “alguém”. Ou seja, nas duas pontas há sujeitos. O primeiro é sempre o narrador; o segundo é sempre o narrado. Quando seu olhar se volta para suas próprias ações imersas na tradição, surge o narrador clássico, sábio, conselheiro; de modo diverso, quando a mirada é para um “outro” alguém, e não há a pretensão do conselho, fala-se no narrador pós-moderno.
No meio desse trajeto, há o narrador do romance que, como propõe Silviano Santiago, é aquele que se pretende isento sem sê-lo. É o solitário, que busca, com a narrativa, não a lição de moral, mas o sentido da vida. Nesse caso, seu olhar não consegue se libertar totalmente do ego forte. Ele se dirige para a personagem criada que, como coloca Silviano, não foge muito à situação primeira. Trata-se, portanto, de um meio termo entre o narrador clássico e o pós-moderno. Voltemos, então, às extremidades.
Neste momento, já podemos destacar elementos importantes em ambas as narrativas para nossa análise. Há “o sujeito que olha”, “o olhar”, “o outro que é olhado”, e “o objetivo do olhar”. “O sujeito que olha” é o narrador; “o outro” pode tanto ser o próprio narrador - imiscuído na tradição -, ou um terceiro; “o objetivo do olhar” tanto pode ser para atualização da tradição e produção de conselhos, ou para o mero deleite ou curiosidade. As variações, como visto, vão definir um tipo ou outro de narrador, como quer Silviano.
No trajeto em busca do deslinde de nossa questão, surge outra pergunta de fundamental importância para nosso desiderato: qual é o vínculo da narrativa com o narrador? A resposta a essa pergunta talvez nos esclareça qual é o interesse do indivíduo pelo que narra. Para Evelina Hoisel[12] a estrutura de uma obra é sempre a vida grafada. Citando Valéry ela afirma “o caráter eminentemente biográfico de qualquer objeto de conhecimento artístico ou científico”. E prossegue na citação: “na verdade, não existe teoria que não seja um fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia”[13]. Em vista disso, podemos acrescentar que o que se narra é, de alguma forma, a própria vida. E numa interpretação mais extensiva talvez se possa dizer que o narrador narra para, de alguma maneira, falar de si, tentar se encontrar, se conceber, como indivíduo em determinado contexto e lugar, sendo esse, ao que tudo indica, seu interesse.
Uma vez colocada a natureza do vínculo da narrativa com o narrador, que é a busca auto-concepção como indivíduo, chegamos a uma primeira pista para resolver nossa questão. A variação da qualidade da narrativa pode estar ligada à variação da concepção da identidade do sujeito ao longo da história. Vamos tentar prosseguir nesse caminho.
A noção do indivíduo, antes da modernidade, estava lastreada em apoios estáveis, em tradições e estruturas sociais rígidas. O “eterno” subsidiava o que não se entendia e dava estabilidade ao mundo. A soberania da pessoa era subalterna ao cosmos e moldada pelos arquétipos morais assentes.
Depois do humanismo renascentista do séc. XVI, que colocou o homem no centro do universo, até o iluminismo do séc. XVII, emergiu o indivíduo soberano sob a égide do logos. Houve aí uma importante ruptura com o passado.
Obviamente que a estrutura desse indivíduo não se formou de forma abrupta nem apresentou etapas estanques. O indivíduo moderno emergiu tendo como elemento centrador o cogito de Descartes. A partir dessa época, ele se libertou da medida da Igreja Católica com o protestantismo, e conquistou uma relação mais direta com Deus; decifrou mistérios da natureza com a ciência; cresceu com o iluminismo; fundou o estado liberal; voltou-se para o coletivo com as idéias socializantes.
Nessa oportunidade, o sujeito ainda era centrado, mas não mais ligado a um cosmos estruturante que tudo explicava pela fé e pela tradição. O logos dava estabilidade à vida. A ciência positiva ditava as normas. A filosofia iluminista elaborava argumentos de legitimação do Estado burguês.
Mas todo esse fervilhar de mudanças prosseguiu, e com ele a identidade do indivíduo. A sociologia trouxe críticas ao individualismo cartesiano. Surgiu a concepção alternativa da formação do indivíduo por meio de sua participação em relações sociais mais amplas. Ficou mais clara a forma de sustentação dos processos e estruturas sociais a partir do status quo. Houve, com isso, uma externalização do interior do indivíduo, e uma interiorização do exterior.
Este modelo sociológico foi produto do início do século XX. Pouco depois, tiveram inicio cinco grandes avanços na teoria social que foram fundamentais para o descentramento do sujeito cartesiano; foram elas: o marxismo em sua reinterpretação nos anos 60; a descoberta do inconsciente freudiano; Ferdinand Saussure com sua dicotomia entre língua e fala; a produção da “genealogia” do sujeito moderno por Foucault; o feminismo como crítica teórica e movimento social. Tudo isso, aliado às inovações tecnológicas, ao avanço do capitalismo selvagem com a supervalorização do consumo, aos meios de comunicação de massa, internet, celular, globalização de mercados - que levou ao enfraquecimento de fronteiras nacionais, formaram o berço do que se entende hoje por pós-modernismo. Essas mudanças tiveram o condão de fragmentar o sujeito, tirá-lo de suas certezas e acabar com sua unicidade “estável”.
Com base nessa contextualização, já se torna possível delinear um entendimento para a questão da explicação sobre a variação na forma de narrar.
Nos primórdios, calcado na estabilidade do Cosmos, o indivíduo ainda era muito submisso à tradição, às estruturas sociais rígidas. Devido a essa falta de soberania, ainda não se podia falar em “sujeito” como seria entendido mais tarde. Era o ambiente propício para um narrar atemporal, épico, arquetípico, que pregava a troca de experiência dos mais velhos, o reviver da tradição. Era o momento do narrador clássico que narrava para manter a tradição e dar conselhos ao “bom viver”.
O cogito cartesiano veio trazer outro paradigma ao indivíduo. O humanismo renascentista deslocou o foco do pensamento do cosmos para o logos. O homem passou a ser o centro do universo. Ascendeu a burguesia. A religião enfrentou crises. Surgiu o iluminismo com suas teses. O indivíduo foi “assujeitado” em um locus social e ganhou novas feições. O romance burguês ganhou força e, com ele e todo esse contexto, emergiu o narrador do romance. O sujeito, entretanto, persistiu centrado, agora, no cartesianismo.
Mas o pensamento continuou em sua efervescência e, com ele, seguiu a manifestação do indivíduo. As ciências sociais trouxeram sua contribuição. Paradigmas importantes fora suplantados. O capitalismo venceu seus opositores e expandiu o consumo de forma globalizada e avassaladora. A tecnologia da informacção e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa incrementaram a interação entre os povos; romperam-se fronteiras físicas e humanas antes inexpugnáveis. Dentro desse caldeirão borbulhante o sujeito se esfacelou. Perdeu seu centramento cartesiano. Valores destinados à produção, à ordem, passaram a ser questionados. Surgiu a idéia da polifonia do discurso. Passou-se a entender que não era o “eu” que dava sentido ao falar, como se entendia desde época do narrador clássico até a do romance. Surgiu o entendimento de que o sentido dependia do espaço interdiscussivo; ou seja, não só do “mesmo”, mas também do “outro”. O narrador teve, mais uma vez, de mudar de posição para buscar sua identidade em seu novo contexto. Voltou-se, assim, para o olhar do outro para se encontrar.
O outro aspecto referido à narrativa pós-moderna - o desinteresse pelo passado e pelo conselho -, decorre do próprio contexto libertário da pós-modernidade. Com o entendimento trazido pelas ciências sociais, do papel do indivíduo “assujeitado” para a manutenção de estruturas sociais injustas e pouco atraentes, o jogo tradicional passou a ficar desestimulante. Também, as “maravilhas” da contemporaneidade, bem representadas pelos cenários dos modernos shoppings, os sofisticados “vídeo-games” e toda o resto da parafernália tecnológica atual estruturam uma vida-espetáculo que ofuscam qualquer interesse pelo passado e pela experiência. Esses dois fatores trazem uma prática de vida que valoriza o carpe diem, ou seja, o viver o momento.
BIBLIOGRAFIA:
AMARAL, Sayonara. João Gilberto Noll: Narrativa pó-Moderna, Corpos pós-humanos. Disponível em : http://www.joaogilbertonoll.com.br/noll1.pdf.%20Acesso%20em%2030/05/2009.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 2ª ed. Rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004
FRANCO, Jefferson L. O lado Épico da Mentira. In: Crítica e alguma Teoria.Disponível em: www.scribd.com/doc/2599953/Critica-e-Alguma-Teoria. Acesso em 30/05/2009.
HOISEL, E. C. S. . Literatura e biografia: a trama das relações. In: Grande sertão:veredas - uma escritura biográfica. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2006. v. 1. 218 p.21-54.
LOPES, Silvana Mendonça. A identidade cultural na pós-modernidade. Webartigos.com. Disponível em:
http://www.webartigos.com/articles/12441/1/identidade-cultural-na-pos-modernidade/pagina1.html. Acesso em 17/06/2009.
SANTIAGO, Silviano. O narrador pó-moderno. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, s/d.
SANTOS, Jair Ferreira. O que é pós-modernismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
ANÔNIMO. A Página da Educação. Auto-determinação do Sujeito Pós-moderno. Disponível em http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=4529. Acesso em 30/05/2009.
[1]BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.p. 197.
[2] Idem. P. 201
[3] Ibidem. P.211.
[4] Ibidem. P. 211.
[5] Ibidem. P. 212.
[6] SANTIAGO, Silviano. O narrador pó-moderno.P.45.
[7] Idem. P. 52.
[8] Ibidem. P. 53.
[9] Ibidem. P. 54.
[10] Ibidem. P. 57.
[11] Ibidem. P. 57.
[12] HOISEL, E. C. S. . Literatura e biografia: a trama das relações., P.54.
[13] Idem. P.54.
quinta-feira, 9 de julho de 2009
Schopenhauer e os Upanishades
Diz Schopenhauer: “No desenvolvimento de minha filosofia, os conceitos de Kant, tanto quanto os livros sagrados dos hindus e Platão, foram, depois do espetáculo vivo da natureza, meus mais preciosos inspiradores” (f. moral pág. 53). Através da leitura dos Upanixades, Schopenhauer teve o contato com escritos hindus que o ajudou a deduzir que estava no caminho certo com sua filosofia já que estes foram escritos há mais de cinco mil anos e seguiam na mesma direção que ele.
O Sânscrito é uma língua da índia de onde é derivado o termo Upanixade ou Upanichád upa – perto, ni – embaixo, chad – sentar; o que remete ao ato de sentar-se no chão para receber instruções, como por exemplo, de um mestre espiritual. Os Upanixades são parte das escrituras Shruti hindus que tratam também de meditação e de filosofia consideradas como instruções religiosas. Ele traz extensão dos quatro Vedas, Rigveda, Yajurceda, Samaveda e Atharvaveda. Contudo não a informação de quem e quando foram escritos.
Vedas são os quatro textos acima citados, escrito em sânscrito em torno de 1500 a.C que formam a base das escrituras sagradas do hinduísmo. Significa conhecimento, e consistem em variados tipos de textos conhecidos como mantra.
Schopenhauer encontrou ideias que vieram concordar com as suas teorias, unindo o ocidente e esses pensamentos antigos. Os conceitos orientais Maya, “Tat tvam asi” e trimurti demarcam os conceitos de representação, compaixão e Vontade de vida. A teoria da deusa Maya aproxima-se da teoria da representação de Schopenhauer isto porque a causa da representação não residir nela mesma. Se assim o fosse os homens estariam iludidos por Maya; a divindade Maya tem as características da criação e da ilusão, o que a faz parecer contarditória. Para melhor compreendê-la é preciso um conhecimento profundo da doutrina hindu. O véu de Maya se aproxima da ilusão, é sob esse aspecto/significado que Schopenhauer a concebe em sua obra principal.
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O Sânscrito é uma língua da índia de onde é derivado o termo Upanixade ou Upanichád upa – perto, ni – embaixo, chad – sentar; o que remete ao ato de sentar-se no chão para receber instruções, como por exemplo, de um mestre espiritual. Os Upanixades são parte das escrituras Shruti hindus que tratam também de meditação e de filosofia consideradas como instruções religiosas. Ele traz extensão dos quatro Vedas, Rigveda, Yajurceda, Samaveda e Atharvaveda. Contudo não a informação de quem e quando foram escritos.
Vedas são os quatro textos acima citados, escrito em sânscrito em torno de 1500 a.C que formam a base das escrituras sagradas do hinduísmo. Significa conhecimento, e consistem em variados tipos de textos conhecidos como mantra.
Schopenhauer encontrou ideias que vieram concordar com as suas teorias, unindo o ocidente e esses pensamentos antigos. Os conceitos orientais Maya, “Tat tvam asi” e trimurti demarcam os conceitos de representação, compaixão e Vontade de vida. A teoria da deusa Maya aproxima-se da teoria da representação de Schopenhauer isto porque a causa da representação não residir nela mesma. Se assim o fosse os homens estariam iludidos por Maya; a divindade Maya tem as características da criação e da ilusão, o que a faz parecer contarditória. Para melhor compreendê-la é preciso um conhecimento profundo da doutrina hindu. O véu de Maya se aproxima da ilusão, é sob esse aspecto/significado que Schopenhauer a concebe em sua obra principal.
segunda-feira, 25 de maio de 2009
A gramática da persuasão - palestra dia 29/05/09
Prezados Alunos!
Convido a todos para uma palestra que apresentarei em nossa reunião da próxima sexta-feira. Trata-se de um trabalho que já apresentei sobre a Retórica, de Aristóteles. O aluno que estava programado não irá na reunião e eu aproveitarei a oportunidade para compartilhar com o nosso GEP os meus interesses nessa obra, que foi polemicamente revisitada no século XX. Estou chegando de viagem, por isso deixei de fazer postagens sobre os trabalhos apresentados de Ana e Djalma. Mas prometo voltar à tona, assim que me for possível. Abraço a todos!! Sílvia Faustino.
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Convido a todos para uma palestra que apresentarei em nossa reunião da próxima sexta-feira. Trata-se de um trabalho que já apresentei sobre a Retórica, de Aristóteles. O aluno que estava programado não irá na reunião e eu aproveitarei a oportunidade para compartilhar com o nosso GEP os meus interesses nessa obra, que foi polemicamente revisitada no século XX. Estou chegando de viagem, por isso deixei de fazer postagens sobre os trabalhos apresentados de Ana e Djalma. Mas prometo voltar à tona, assim que me for possível. Abraço a todos!! Sílvia Faustino.
segunda-feira, 11 de maio de 2009
CONVITE
Convidamos os integrantes do grupo, e interessados externos que queiram participar, para assistir à apresentação abaixo, a se realizar na próxima sexta-feira, dia 15/05/2009, às 14h, na sala do Mestado em filosofia - São Lázaro - Federação - Salvador-Ba. Os não participantes que queiram assistir devem entrar em contato com o grupo para confirmação de vaga.
Mediador- Djalma J. Neto
Coordenador - Profª Silvia Faustino
APRESENTAÇÃO DA PRÓXIMA SEXTA DIA 15/05/2009
“Uma introdução à análise do discurso”
Quando estudaremos:
1. Estudo da linguagem -> Sassure -> dictomia língua e fala -> exclusão da fala.
2. Orientação lingüística mais recente -> Bakhtin -> língua como fato social (=Saussure)
->Língua como algo concreto fruto de manifestação individual
3. Linguística como parte do enunciado (outra parte é o contexto do enunciado).
->A interação verbal como verdade fundamental da linguagem.
->O interlocutor não é elemento passivo na constituição do significado
->A enunciação individual depende da interação social:
-> A importância do “outro” para o significado.
4. O contexto social na linguagem -> da elaboração mental à objetivação (enunciação).
->Adaptação ao contexto imediato e à interlocutores concretos.
->Conclusão: uma lingüística imanente não dá conta de seu objeto.
5. Necessidade de a lingüística encontrar o vínculo: linguagem X ideologia.
6. O ideológio no interstício entre a coisa representada e o signo que a representa.
Bakhtin -> Palavra como signo ideológico por excelência.
Lugar privilegiado para manifestação da ideologia.
7. Barthes -> Semiologia -> importância do caráter ideológico do signo.
->A ideologia não somente nos temas; também nas formas.
8. Discurso como nova instância da linguagem .
Discurso -> De composição lingüística e extralingüística.
->Pto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos.
Para isso abordaremos:
9. Esboço histórico da Análise do Discurso
10. Conceitos de Ideologia em Marx, Althusser, Ricoeur
11. Conceito do discurso em Foucault
12. Noção de sujeito
E se houver tempo:
13. Noção de interdiscussividade.
Bibliografia básica: "Introdução à Análise do Discurso". BRANDÃO, Helena H. N. Ed. UNICAMP.
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quinta-feira, 7 de maio de 2009
Divagações em Rousseau
Inicialmente, obrigado pelo privilégio de ter sido "cobaia" do nosso GEP. rsrsrs
Acredito que temas relevantes e centrais para o GEP podem ser explorados em Rousseau, especialmente na leitura feita pelo Bento Prado Jr. Sua abordagem da obra rousseauniana, sobretudo a partir do "Ensaio sobre a origem das línguas", percebe uma retórica bem particular, que traz em si aspectos da estética, da ética e da política costurados pela linguagem melódica e afetiva.
Falando diretamente à Ana, me vejo no mesmo barco de indagações como vc! A leitura de Rousseau tb é nova pra mim. Mas, tentando refletir sobre algumas de suas questões, acho que posso inferir o seguinte: 1) Não consigo perceber um "estatuto ontológico" ou uma "metafísica" da linguagem em Rousseau. É sempre bom lembrar que, para Rousseau, "a palavra é a primeira instituição social"; tem caráter político que denuncia a necessidade dos acordos para o viver em sociedade. Se linguagem e vida social se fundam juntas, esta linguagem não poderia ter estatuto ontológico nem ser uma metafísica; 2) Parece que a "significação da linguagem", para Rousseau, se dá no campo da afetividade, da moral. Com os aspectos retóricos da linguagem não se faz ciência, como na lógica, mas também não se deixa de "conhecer" o mundo quando se faz uso dessa linguagem moral/política. Porque, ao que parece, o mundo é político e para um mundo político a linguagem deve ser política/retórica, capaz de convencimento. O que não quer dizer que houve, da parte de Rousseau, um abandono dos aspectos lógico-gramaticais da linguagem em detrimento dos retórico-políticos. Na analogia que faz da linguagem com a música, comparando a escrita com a harmonia, Rousseau ressalta que este processo é natural. O aperfeiçoamento da linguagem (e da música) gera, simultaneamente, o empobrecimento de sua força original, cedendo lugar à violência das coisas.
Bem, acho que compliquei mais do que ajudei! rsrsr
Mas a ultima postagem da profª Silvia é muito esclarecedora. Vale a pena conferir.
Aroldo Mira
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Acredito que temas relevantes e centrais para o GEP podem ser explorados em Rousseau, especialmente na leitura feita pelo Bento Prado Jr. Sua abordagem da obra rousseauniana, sobretudo a partir do "Ensaio sobre a origem das línguas", percebe uma retórica bem particular, que traz em si aspectos da estética, da ética e da política costurados pela linguagem melódica e afetiva.
Falando diretamente à Ana, me vejo no mesmo barco de indagações como vc! A leitura de Rousseau tb é nova pra mim. Mas, tentando refletir sobre algumas de suas questões, acho que posso inferir o seguinte: 1) Não consigo perceber um "estatuto ontológico" ou uma "metafísica" da linguagem em Rousseau. É sempre bom lembrar que, para Rousseau, "a palavra é a primeira instituição social"; tem caráter político que denuncia a necessidade dos acordos para o viver em sociedade. Se linguagem e vida social se fundam juntas, esta linguagem não poderia ter estatuto ontológico nem ser uma metafísica; 2) Parece que a "significação da linguagem", para Rousseau, se dá no campo da afetividade, da moral. Com os aspectos retóricos da linguagem não se faz ciência, como na lógica, mas também não se deixa de "conhecer" o mundo quando se faz uso dessa linguagem moral/política. Porque, ao que parece, o mundo é político e para um mundo político a linguagem deve ser política/retórica, capaz de convencimento. O que não quer dizer que houve, da parte de Rousseau, um abandono dos aspectos lógico-gramaticais da linguagem em detrimento dos retórico-políticos. Na analogia que faz da linguagem com a música, comparando a escrita com a harmonia, Rousseau ressalta que este processo é natural. O aperfeiçoamento da linguagem (e da música) gera, simultaneamente, o empobrecimento de sua força original, cedendo lugar à violência das coisas.
Bem, acho que compliquei mais do que ajudei! rsrsr
Mas a ultima postagem da profª Silvia é muito esclarecedora. Vale a pena conferir.
Aroldo Mira
quarta-feira, 22 de abril de 2009
Só se expressam paixões pelo uso de sinais (respondendo a Ana Olívia)
Diante das instigantes colocações de Ana Olívia, desejo dizer o seguinte. O problema acerca da "apreensão cognitiva" da linguagem, sobretudo se tal apreensão estiver ligada à "constituição ontológica do mundo" não é um problema formulado por Rousseau. Como sua reflexão sobre a origem das línguas não toma a linguagem como um instrumento de conhecimento do mundo factual ou fenomenal (que seria o conhecimento de objetos ou de fatos), nem a linguagem o interessa pelo seu estatuto epistemológico, nem o que ela expressa tem valor e densidade ontológicos. A linguagem não é uma representação do mundo, mas uma expressão das paixões, dos sentimentos, das vontades e desejos, enfim, da afetividade e das decisões humanas. E enquanto expressão da afetividade, ela vem a ser o elo próprio da comunicação intersubjetiva das vivências, o veículo privilegiado da exteriorização da vontade. Assim como o segundo Wittgenstein, Rousseau não nega o caráter interno, privado dos sentimentos: o que ambos afirmam (e, neste caso, o francês, antes do austríaco), é que são necessários sinais externos para a expressão e comunicação das vivências internas. No caso de Rousseau, a música, os sons, as palavras, a melodia são modos de manifestação da linguagem que conseguem expressar o que vem de dentro. Por outro lado, não é porque o campo da música e da sensibilidade ou afetividade envolve o que poderíamos chamar de "anímico", que o tratamento da expressão linguística é "metafísico" ou "mentalista". O tratamento é retórico. E, enquanto tal - já que a retórica é interdisciplinar desde os gregos - ele é, por um lado, estético (envolve espaço, tempo, cor, som, luz em todos os tons e semi-tons) e, por outro lado, ético e político, pois a dimensão afetiva da racionalidade humana é fundamental para a construção da vida intersubjetiva e social para pensadores como Rousseau. Nada disso é metafísico ou circunscrito a uma dimensão meramente psicológica. Lembremos que Bento sugeriu a ligação da concepção retórica da linguagem em Rousseau ao conceito de gramática do segundo Wittgenstein. Isso me leva a uma última observação. Está correto dizer que Rousseau recusa as regras lógicas ou gramaticais, desde que se entenda por "regras" aquelas normas específicas da lógica clássica, tais como aparecem nos manuais de lógica formal (portanto, não no sentido wittgensteiniano ou habermasiano de regras da racionalidade normativa). Todo filósofo que defende uma concepção retórica da linguagem é crítico de uma concepção essencialmente lógica da linguagem, e nisso se inclui o próprio Aristóteles, que inventou a lógica formal e a retórica, como uma disciplina à parte dos seus escritos estritamente lógicos. Mesmo em Aristóteles, o mais lógico dos filósofos da retórica, o uso retórico da linguagem envolve o logos (discurso), o ethos (o caráter) e o pathos (as paixões). Para terminar, quero dizer à querida Ana, que o que eu chamei de "estética da linguagem" - algo que doravante me interessa pesquisar - é algo que passa pela "virada linguística" que podemos operar em cima da estética kantiana: em vez de "só" espaço e tempo, incluamos também cores, sons, gestos, enfim todo e qualquer sinal que tenha significado. Pode ser anímico, pode ser volitivo, mas "mentalista", não. Espero que Aroldo concorde (pelo menos em parte) com o que eu disse aqui de Rousseau, e agradeço muito à Ana pelas boas questões que me deram a oportunidade de expressão. Um abraço a todos! E vida longa para nosso blog! (Sílvia Faustino)
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domingo, 19 de abril de 2009
Rousseau: ética, estética e política na retórica
Caros Alunos,
O seminário de Aroldo foi o primeiro de uma série que marcará a história de nosso GEP. Eu vou retomar alguns pontos essenciais. Creio que no Brasil, o Ensaio sobre a Origem das Línguas não pode mais ser lido sem a séria consideração da interpretação de Bento Prado Jr. sobre o texto. Como disse Aroldo, o ensaio de Bento vai muito além de um texto "introdutório": sua interpretação de Rousseau é original também no sentido em que ela mesma reflete suas próprias concepções acerca da linguagem. Levando isso em consideração, uma primeira tarefa se impõe: é preciso separar o que Rousseau diz em seu ensaio daquilo que Bento Prado Jr. diz em seu ensaio sobre o ensaio de Rousseau. Sou leitora dos dois ensaios e posso garantir que isso é muito difícil! Depois de ler o ensaio do Bento, nunca mais se lê o de Rousseau da mesma forma. Mas essa dificuldade pode dar um movimento interessante à pesquisa. Segunda observação: a concepção de que "a palavra" é "a primeira instituição social" eleva o Ensaio sobre a Origem das Línguas como peça argumentativa essencial para as teorias antropológicas e políticas de Rousseau, o que retira a obra do lugar periférico que lhe concedem certas leituras tradicionais do pensamento dele (que é o que defende Bento). Se a questão das línguas é uma questão da sedimentação dos significados das palavras e dos gestos humanos, nunca esse opúsculo foi tão atual (a nota 101 de Bento, na p. 105 do livro, aproxima a concepção retórica de Rousseau à concepção wittgensteiniana de gramática). Última observação: a oposição entre fala e escrita ganha sentido mediante a oposição entre sentimentos e ídéias. A escrita que Rousseau critica seria aquela que é incapaz de veicular sentimentos. Assim, temos de ver em que medida essa estética (com sentimento) da linguagem, que Rousseau defende, significa uma recusa de certa estética (sem sentimento) da linguagem. E em que medida a estética da linguagem incorpora uma ética e uma política em seus significados. Mas, agora me dei conta: o que estou (eu mesma) chamando de "estética" da linguagem? Agora, de bate-pronto, não sei. Alguém tem alguma idéia?
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sexta-feira, 10 de abril de 2009
Seminário sobre a Retórica de Rousseau
Olá povo SUREAL (Subjetividade, Representação e Linhuagem)! Brincadeira! rsrsrs
Espero que tenham recebido o email com a seleção de textos. Porém, achei que seria legal postar aqui também no nosso blog. Mas, infelizmente, eu ainda não sei postar anexos, por isso, os textos em francês ficam para depois.
No texto do Bento Prado Jr.:
A força da voz e a violência das coisas
- Capítulo I, parte 2 (A vontade e o desejo), especialmente as páginas 16 a 19;
- Capítulo IV, Retórica e Verdade, pg 81 a 96.
No texto do Rousseau:
Ensaio sobre a origem das línguas
- Capítulo I, Das diferentes maneiras de comunicar os nossos pensamentos, pg 109 a 115;
- Capítulo II, De como a primeira invenção da palavra não nasce das necessidades, mas das paixões, pg 116, 117;
- Capítulo VIII, Diferença geral e local na origem das línguas, pg 137, 138;
- Capítulo XI, Reflexões sobre essas diferenças, pg 158, 159;
- Capítulo XVI, Falsa analogia entre as cores e os sons, pg 174 a 178;
- Capítulo XIX, Como a música degenerou, pg 183 a 187;
- Capítulo XX, Relação das línguas com os governos, pg 188 a 190.
Feliz Páscoa para todos e todas!
Aroldo Mira
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Espero que tenham recebido o email com a seleção de textos. Porém, achei que seria legal postar aqui também no nosso blog. Mas, infelizmente, eu ainda não sei postar anexos, por isso, os textos em francês ficam para depois.
No texto do Bento Prado Jr.:
A força da voz e a violência das coisas
- Capítulo I, parte 2 (A vontade e o desejo), especialmente as páginas 16 a 19;
- Capítulo IV, Retórica e Verdade, pg 81 a 96.
No texto do Rousseau:
Ensaio sobre a origem das línguas
- Capítulo I, Das diferentes maneiras de comunicar os nossos pensamentos, pg 109 a 115;
- Capítulo II, De como a primeira invenção da palavra não nasce das necessidades, mas das paixões, pg 116, 117;
- Capítulo VIII, Diferença geral e local na origem das línguas, pg 137, 138;
- Capítulo XI, Reflexões sobre essas diferenças, pg 158, 159;
- Capítulo XVI, Falsa analogia entre as cores e os sons, pg 174 a 178;
- Capítulo XIX, Como a música degenerou, pg 183 a 187;
- Capítulo XX, Relação das línguas com os governos, pg 188 a 190.
Feliz Páscoa para todos e todas!
Aroldo Mira
domingo, 5 de abril de 2009
Alvíssaras!!!!
Prezadas Ana Olívia e Rosângela, muito obrigada pela simpática iniciativa!!! Estávamos mesmo precisando de um canal mais sofisticado para as nossas discussões e reflexões. Que elas se frutifiquem e se espalhem como as borboletas que acabam de nascer no vale ao lado! Alvíssaras!!!!
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Visitem o vídeo sobre Rousseau no link, vejam também os relacionados, que fica do lado direito da tela no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=pJ46xmN6Lc4
Leia Maissábado, 4 de abril de 2009
Boas vindas!!
Olá, caros colegas..
A criação deste blog - uma iniciativa repentina, minha e da Rosângela - vem no sentido de estreitar as relações entre os membros do Grupo Subjetividade, Representação e Linguagem. Este será um veículo aberto, mas de acesso privilegiado aos integrantes do grupo, onde serão postados textos filosóficos discutidos por nós, indicações bibliográficas e o que houver, afim de fomentar as discussões e otimizar a nossa convivência! Portanto, este espaço virtual assim como o próprio grupo necessitam da colaboração de todos para se solidificar. A esperança aqui compartilhada é a de que as experiências filosóficas individuais possam se somar na direção de uma formação acadêmica de qualidade e sobretudo, na autocientização do espírito!
A todos, as minhas boas vindas!
Att,
Ana Olívia
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A criação deste blog - uma iniciativa repentina, minha e da Rosângela - vem no sentido de estreitar as relações entre os membros do Grupo Subjetividade, Representação e Linguagem. Este será um veículo aberto, mas de acesso privilegiado aos integrantes do grupo, onde serão postados textos filosóficos discutidos por nós, indicações bibliográficas e o que houver, afim de fomentar as discussões e otimizar a nossa convivência! Portanto, este espaço virtual assim como o próprio grupo necessitam da colaboração de todos para se solidificar. A esperança aqui compartilhada é a de que as experiências filosóficas individuais possam se somar na direção de uma formação acadêmica de qualidade e sobretudo, na autocientização do espírito!
A todos, as minhas boas vindas!
Att,
Ana Olívia
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