domingo, 20 de setembro de 2009

O eu, o outro e a inveja



A fim de incentivar a exploração de uma perspectiva da crítica literária que tanto interessa ao nosso grupo, tentarei tecer algumas considerações sobre o belo poema de Neruda, recitado e postado por Rosângela. Pode-se dizer que o narrador (a "voz" ou o "eu") do poema expressa, em relação a certo "camarada", um rico complexo de vivências, que vai do sentimento de inveja ao de extremo abandono, passando por um tortuoso caminho de auto-conhecimento. Sugiro que sigamos rapidamente algumas linhas de suas quatro densas estrofes. 1) Na primeira estrofe, conta o narrador que um camarada seu - 'camarada' é sempre um companheiro ou amigo - "voltou" a dar-lhe a "velha inveja", que ele identifica ao "peso" de sua própria "substância intransferível". A inveja aparece como "dada" pelo outro a alguém que, passivamente, a sente. 2) No início da segunda estrofe, as frases "assaltei-te a mim, assalta-me a ti" apresentam um rico jogo de inversões entre sujeito e objeto, e entre passivo e ativo, no entrecruzado movimento de um "frio punhal" que "dessangra", ao evidenciar a "insuficiência" e a mudança enviesada de si "pelo outros". Contrução heterônoma de si - "queres construir-te com aquilo que queres e não és" - pois o que se quer está fora de si mesmo. 3) Na mais longa estrofe, a terceira, o camarada é o "antigo de rosto", ao qual se liga certos sinais dos tempos: vestígios, cinzas, cicatrizes, velhos olhos, mãos enrugadas e velhas. Mas também ao qual se vinculam qualidades de "guerreiro", os verdadeiros objetos do desejo: a "segurança independente" e a "espada do orgulho". O narrador confessa querer o que ele não é, sugerindo que o "pior" de si - que segue sempre lhe habitando - é precisamente o que ele é. 4) Mas, o "camarada" esteve somente de passagem: bebeu, falou, e se foi, levando aquilo que o eu que narra queria ser. Os últimos versos sugerem que "talvez" o "outro" tenha ido também melancólico, caso aconteça que ele queira, por seu turno, ser o eu que agora fica - o que equivale a estender ao outro o próprio sentimento de inveja. Se tais análises se sustentam, pode-se rematar dizendo que se trata de um poema que tematiza o desencontro humano que nasce com a inveja. Tomás de Aquino disse que a inveja é a tristeza em relação às coisas boas dos outros. E Espinosa considerava a inveja como a pior de todas as paixões. O poema de Neruda expressa um profundo desencontro do eu consigo mesmo e com o outro, mesmo que se tratando de antigos camaradas. Salta do poema, uma condição paradoxal do querer humano. Algo como uns "olhos miseráveis" que teimam em não querer a si próprio e, com isso, também não querer ao outro como o diferente de si. Pois o outro, como uma espécie de prolongamento negativo, não passa da representação do que faz falta a si. Tem-se uma "substância intransferível" e, ao mesmo tempo, o desejo de uma impossível transferência. Ora, se querer o que o outro é, para si, for o mesmo que não querer a si, nem ao outro, então, vive-se no regime de uma vontade agudamente infeliz, onde a inveja se revela, afinal, como o oposto do amor - de si e do outro. Sílvia Faustino.

2 comentários:

Eduardo Tornaghi disse...

Volte sempre Silvia. É uma delícia esse brinquedo de sentir o que dizem os poemas né?

Non je ne regrette rien: Ediney Santana disse...

"crítica literária "
nada mais complicado

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