sexta-feira, 18 de setembro de 2009

O outro



Ontem meu camarada
nervoso, insigne, íntegro,
voltou-me a dar a velha inveja, o peso
de minha própria substância intransferível.

Assaltei-te a mim, assalta-me
a ti, este frio de punhal
quando te mudaria pelos outros,
quando tua insuficiência se dessangra
dentro de ti como uma veia aberta
e queres construir-te mais uma vez
com aquilo que queres e não és.

Meu camarada, antigo
de rosto como vestígio de vulcão,
cinzas, cicatrizes
junto aos velhos olhos candentes:
(lâmpadas de seu próprio subterrâneo),
enrugadas as mãos
que acariciarão o fulgor do mundo
e uma segurança independente,
a espada do orgulho
nessas velhas mãos de guerreiro.
Talvez seja isso o que eu queria
como destino, aquele
que não sou eu, porque
constantemente mudamos de sol,
de casa, de país, de chuva, de ares
de livro e traje,
e o pior de mim segue me habitando,
continuo com aquilo que sou até a morte?

Meu camarada, então,
bebeu em minha mesa, falou, quiçá, ou teve
alguma de suas dúvidas
duras como relâmpagos
e se foi aos seus deveres, a sua casa,
levando aquilo que eu quis ser
e talvez melancólico
por não ser eu, por não ter os meus olhos,
meus olhos miseráveis.



Poesia extraída do livro: Defeitos Escolhidos & 2000
Autor: Pablo Neruda
Páginas: 17 e 19
Editora: L&PM

1 comentários:

Figueredo Dias disse...

Quando por vezes nos deparamos a pensar sobre a possibilidade da morte ou de alguma maneira a temos muito próxima, refletimos sobre o nosso percurso na vida até o ponto em que nos encontramos, e nos damos conta que havia muito para ser retocado, modificado, reconstruído; cabe-nos buscar a leveza de cada dia sem reviver o passado ou antecipar o futuro; nos felicitarmos por sermos como somos e não esquecer de mergulharmos em nós sempre que possível.

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