sexta-feira, 17 de julho de 2009

POR QUE NARRADOR PÓS-MODERNO?
Ensaio
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Autor: Djalma Jacobina Neto
Julho 2009


Para Walter Benjamin[1] o ato de narrar está em vias de extinção. Para ele, são cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Isso se dá, segundo o pensador, pela crescente dificuldade de intercambiar experiências: “as ações da experiência estão em baixa e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo”. Disso resulta que “a sabedoria – lado épico da verdade – está em extinção”.
Ainda para Benjamin, o surgimento do romance, no início do período moderno, é o primeiro indício da decadência pretendida. Sua origem é o indivíduo isolado, que não recebe mais conselhos nem sabe dá-los. Não há aí a menor centelha de sabedoria. Uma das razões disso é que ele está essencialmente ligado ao livro, ou seja, à palavra escrita. O romance, portanto, nem procede da tradição oral nem a alimenta, o que o faz diferir, em essência, do narrador, que retira de sua experiência o que conta: “sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes”[2].
No tocante à informação, o autor mostra que a situação é ainda mais extrema. Pois que, também, estranha à narrativa, provoca crise até mesmo no romance. Na informação não há a imersão dos fatos em quem conta, para que seja recontado com a coloração da experiência pessoal. Também não há a preocupação com valores perenes. O contado tem valor mais imediato. Nela não há o surpreendente - como deve ocorrer na narrativa -, os fatos já chegam explicados.
Esclarece o autor que uma das razões da tamanha disparidade entre os estilos, do que decorre a decadência em comento, é que “metade da arte narrativa está em evitar explicações”. Há ainda outros fatores, como a necessidade contemporânea de tudo abreviar; o enfraquecimento da idéia de eternidade; a perda da força evocativa da morte.
Ainda mais, Benjamin vê na reminiscência o fundamento da cadeia da tradição que transmite os acontecimentos de geração em geração. Ela “tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si”[3]. A memória se apresenta, assim, como a musa da narrativa; como a rememoração diz respeito ao romance “depois que a desagregação da poesia épica apagou a unidade de sua origem comum na reminiscência”[4]. Há diferenças substanciais entre as duas. A musa do narrador é breve, consagrada a um herói, uma batalha; a do romance dedica-se a muitos fatos difusos.
Por fim, o romance é centrado na busca de um “sentido da vida”; enquanto que a narrativa épica lastreia-se na “moral da história” [5].
Com base nessas colocações, Silviano Santiago escreveu sobre o narrador pós-moderno. Em seu texto, ele não se restringe à proposta de Walter Benjamin de aplicar o conceito de narrador a apenas uma situação. Para ele, há três tipos que representam estágios evolutivos[6]. De início, o clássico, para o qual há a necessidade de intercâmbio de experiências; segundo, o narrador de romance que não fala de forma exemplar; e, por fim, o narrador jornalista que transmite a informação e não narra a própria experiência.
É com base nesse apanhado que Silviano apresenta um quarto tipo, o narrador pós-moderno, protagonista de seu texto. Este, diferentemente do clássico, transmite uma “sabedoria” decorrente da observação de uma vivência alheia. A autenticidade, nesse caso, não provém da vivência do ocorrido, mas da verossimilhança, calcada na lógica interna do relato. O narrador pós-moderno de Santiago se aproxima, assim, do que ele tem por narrador jornalista.
A tese que sustenta Silviano é que a forma pós-moderna de narrar é encarada por outra perspectiva. É como se o narrador dissesse: “deixai-me olhar para que você, leitor, também possa ver”[7]. O que se valoriza, aí, é o olhar. A experiência é de pouca valia. Donde conclui que “a ação pós-moderna é jovem, inexperiente, exclusiva, privada de palavra”[8]. O narrador sabe que tem a palavra onde ninguém mais a tem, todavia, sabe também que sua palavra não tem mais utilidade, daí o foco do olhar e da palavra sobre aqueles que não a tem.
Assim, o narrador pós-moderno observa para contar o que vê sem se preocupar em dar conselhos. Silviano expõe a incomunicabilidade de experiências entre gerações, o que traz a “impossibilidade da continuidade linear ao processo de aprimoramento do homem e da sociedade”[9].
Diante disso, a narrativa se volta para falar da pobreza de experiência e também da impropriedade da palavra escrita como processo de comunicação.
Nesse contexto, Silviano coloca a pergunta: por que se olha?[10] Ao que responde, baseado em Nathalie Sarraute, que se olha da mesma forma que a planta se volta para o Sol no fototropismo. Segundo ele, o Sol é mais jovem, a planta mais experiente. Adiante, acrescenta que em termos apocalípticos olha-se para se dar razão e finalidade à vida. Mas será que é só isso? A rigor não é nem isso. Transposto para a experiência humana a imagem há de ser invertida; o Sol é representado pelo mais jovem, que irradia calor, transmite energia e tonifica a velha planta. Não há, portanto, evidência para a razão e finalidade do olhar. O narrador olha, o personagem é olhado, assim discorre o conto analisado por Silviano, “mas ficam como enigma a razão e a finalidade desse olhar”[11].
A ficção de Edilberto é desenvolvida em cima desse mistério, é o que afirma Silviano. Mas não é nessa direção que queremos apresentar nosso raciocínio. O que tentamos como proposta de trabalho é uma breve análise da razão dessa guindada do foco narrativo, que parte do narrador clássico e faz um percurso, segundo Silviano, evolutivo, passando pelo narrador do romance até chegar ao pós-moderno, sob a ótica da concepção do sujeito.
Para chegarmos a um bom termo neste trabalho é necessário que façamos uma retrospectiva de alguns aspectos do narrador clássico, de Walter Benjamin. Nele há a narrativa a partir da ação e da memória. Ou seja, o narrador se apropria do que conhece da tradição e mescla esse conhecimento com sua própria experiência. Nesse momento, fala-se de autenticidade. Conta-se o que se viveu para se atualizar a sabedoria e produzir bons conselhos de vida.
Na hipótese do narrador pós-moderno, de Silviano Santiago, o que é valorizado é o olhar para o outro. Olha-se para quem não sabe narrar; para o jovem que vive o momento, e se aprecia o seu viver, sem a pretensão de aconselhar.
Se não podemos negar que as diferenças entre os dois conceitos extremos saltam aos olhos; também,não podemos deixar de observar que entre os dois há um importante ponto de convergência. Em ambos existe alguém olhando com o intuito de narrar, ainda que, como visto, essas narrativas tenham objetivos diferentes.
Nesse ponto, essa primeira análise abre um caminho luminoso para a questão que buscamos elucidar, que é a busca de uma explicação para a mudança do foco do olhar. A partir da primeira convergência chegamos à segunda. Devemos observar que em ambos os casos esse “alguém” que olha, mira, sempre, seu olhar em outro “alguém”. Ou seja, nas duas pontas há sujeitos. O primeiro é sempre o narrador; o segundo é sempre o narrado. Quando seu olhar se volta para suas próprias ações imersas na tradição, surge o narrador clássico, sábio, conselheiro; de modo diverso, quando a mirada é para um “outro” alguém, e não há a pretensão do conselho, fala-se no narrador pós-moderno.
No meio desse trajeto, há o narrador do romance que, como propõe Silviano Santiago, é aquele que se pretende isento sem sê-lo. É o solitário, que busca, com a narrativa, não a lição de moral, mas o sentido da vida. Nesse caso, seu olhar não consegue se libertar totalmente do ego forte. Ele se dirige para a personagem criada que, como coloca Silviano, não foge muito à situação primeira. Trata-se, portanto, de um meio termo entre o narrador clássico e o pós-moderno. Voltemos, então, às extremidades.
Neste momento, já podemos destacar elementos importantes em ambas as narrativas para nossa análise. Há “o sujeito que olha”, “o olhar”, “o outro que é olhado”, e “o objetivo do olhar”. “O sujeito que olha” é o narrador; “o outro” pode tanto ser o próprio narrador - imiscuído na tradição -, ou um terceiro; “o objetivo do olhar” tanto pode ser para atualização da tradição e produção de conselhos, ou para o mero deleite ou curiosidade. As variações, como visto, vão definir um tipo ou outro de narrador, como quer Silviano.
No trajeto em busca do deslinde de nossa questão, surge outra pergunta de fundamental importância para nosso desiderato: qual é o vínculo da narrativa com o narrador? A resposta a essa pergunta talvez nos esclareça qual é o interesse do indivíduo pelo que narra. Para Evelina Hoisel[12] a estrutura de uma obra é sempre a vida grafada. Citando Valéry ela afirma “o caráter eminentemente biográfico de qualquer objeto de conhecimento artístico ou científico”. E prossegue na citação: “na verdade, não existe teoria que não seja um fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia”[13]. Em vista disso, podemos acrescentar que o que se narra é, de alguma forma, a própria vida. E numa interpretação mais extensiva talvez se possa dizer que o narrador narra para, de alguma maneira, falar de si, tentar se encontrar, se conceber, como indivíduo em determinado contexto e lugar, sendo esse, ao que tudo indica, seu interesse.
Uma vez colocada a natureza do vínculo da narrativa com o narrador, que é a busca auto-concepção como indivíduo, chegamos a uma primeira pista para resolver nossa questão. A variação da qualidade da narrativa pode estar ligada à variação da concepção da identidade do sujeito ao longo da história. Vamos tentar prosseguir nesse caminho.
A noção do indivíduo, antes da modernidade, estava lastreada em apoios estáveis, em tradições e estruturas sociais rígidas. O “eterno” subsidiava o que não se entendia e dava estabilidade ao mundo. A soberania da pessoa era subalterna ao cosmos e moldada pelos arquétipos morais assentes.
Depois do humanismo renascentista do séc. XVI, que colocou o homem no centro do universo, até o iluminismo do séc. XVII, emergiu o indivíduo soberano sob a égide do logos. Houve aí uma importante ruptura com o passado.
Obviamente que a estrutura desse indivíduo não se formou de forma abrupta nem apresentou etapas estanques. O indivíduo moderno emergiu tendo como elemento centrador o cogito de Descartes. A partir dessa época, ele se libertou da medida da Igreja Católica com o protestantismo, e conquistou uma relação mais direta com Deus; decifrou mistérios da natureza com a ciência; cresceu com o iluminismo; fundou o estado liberal; voltou-se para o coletivo com as idéias socializantes.
Nessa oportunidade, o sujeito ainda era centrado, mas não mais ligado a um cosmos estruturante que tudo explicava pela fé e pela tradição. O logos dava estabilidade à vida. A ciência positiva ditava as normas. A filosofia iluminista elaborava argumentos de legitimação do Estado burguês.
Mas todo esse fervilhar de mudanças prosseguiu, e com ele a identidade do indivíduo. A sociologia trouxe críticas ao individualismo cartesiano. Surgiu a concepção alternativa da formação do indivíduo por meio de sua participação em relações sociais mais amplas. Ficou mais clara a forma de sustentação dos processos e estruturas sociais a partir do status quo. Houve, com isso, uma externalização do interior do indivíduo, e uma interiorização do exterior.
Este modelo sociológico foi produto do início do século XX. Pouco depois, tiveram inicio cinco grandes avanços na teoria social que foram fundamentais para o descentramento do sujeito cartesiano; foram elas: o marxismo em sua reinterpretação nos anos 60; a descoberta do inconsciente freudiano; Ferdinand Saussure com sua dicotomia entre língua e fala; a produção da “genealogia” do sujeito moderno por Foucault; o feminismo como crítica teórica e movimento social. Tudo isso, aliado às inovações tecnológicas, ao avanço do capitalismo selvagem com a supervalorização do consumo, aos meios de comunicação de massa, internet, celular, globalização de mercados - que levou ao enfraquecimento de fronteiras nacionais, formaram o berço do que se entende hoje por pós-modernismo. Essas mudanças tiveram o condão de fragmentar o sujeito, tirá-lo de suas certezas e acabar com sua unicidade “estável”.
Com base nessa contextualização, já se torna possível delinear um entendimento para a questão da explicação sobre a variação na forma de narrar.
Nos primórdios, calcado na estabilidade do Cosmos, o indivíduo ainda era muito submisso à tradição, às estruturas sociais rígidas. Devido a essa falta de soberania, ainda não se podia falar em “sujeito” como seria entendido mais tarde. Era o ambiente propício para um narrar atemporal, épico, arquetípico, que pregava a troca de experiência dos mais velhos, o reviver da tradição. Era o momento do narrador clássico que narrava para manter a tradição e dar conselhos ao “bom viver”.
O cogito cartesiano veio trazer outro paradigma ao indivíduo. O humanismo renascentista deslocou o foco do pensamento do cosmos para o logos. O homem passou a ser o centro do universo. Ascendeu a burguesia. A religião enfrentou crises. Surgiu o iluminismo com suas teses. O indivíduo foi “assujeitado” em um locus social e ganhou novas feições. O romance burguês ganhou força e, com ele e todo esse contexto, emergiu o narrador do romance. O sujeito, entretanto, persistiu centrado, agora, no cartesianismo.
Mas o pensamento continuou em sua efervescência e, com ele, seguiu a manifestação do indivíduo. As ciências sociais trouxeram sua contribuição. Paradigmas importantes fora suplantados. O capitalismo venceu seus opositores e expandiu o consumo de forma globalizada e avassaladora. A tecnologia da informacção e o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa incrementaram a interação entre os povos; romperam-se fronteiras físicas e humanas antes inexpugnáveis. Dentro desse caldeirão borbulhante o sujeito se esfacelou. Perdeu seu centramento cartesiano. Valores destinados à produção, à ordem, passaram a ser questionados. Surgiu a idéia da polifonia do discurso. Passou-se a entender que não era o “eu” que dava sentido ao falar, como se entendia desde época do narrador clássico até a do romance. Surgiu o entendimento de que o sentido dependia do espaço interdiscussivo; ou seja, não só do “mesmo”, mas também do “outro”. O narrador teve, mais uma vez, de mudar de posição para buscar sua identidade em seu novo contexto. Voltou-se, assim, para o olhar do outro para se encontrar.
O outro aspecto referido à narrativa pós-moderna - o desinteresse pelo passado e pelo conselho -, decorre do próprio contexto libertário da pós-modernidade. Com o entendimento trazido pelas ciências sociais, do papel do indivíduo “assujeitado” para a manutenção de estruturas sociais injustas e pouco atraentes, o jogo tradicional passou a ficar desestimulante. Também, as “maravilhas” da contemporaneidade, bem representadas pelos cenários dos modernos shoppings, os sofisticados “vídeo-games” e toda o resto da parafernália tecnológica atual estruturam uma vida-espetáculo que ofuscam qualquer interesse pelo passado e pela experiência. Esses dois fatores trazem uma prática de vida que valoriza o carpe diem, ou seja, o viver o momento.

BIBLIOGRAFIA:
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BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 2ª ed. Rev. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2004
FRANCO, Jefferson L. O lado Épico da Mentira. In: Crítica e alguma Teoria.Disponível em: www.scribd.com/doc/2599953/Critica-e-Alguma-Teoria. Acesso em 30/05/2009.
HOISEL, E. C. S. . Literatura e biografia: a trama das relações. In: Grande sertão:veredas - uma escritura biográfica. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia; Academia de Letras da Bahia, 2006. v. 1. 218 p.21-54.
LOPES, Silvana Mendonça. A identidade cultural na pós-modernidade. Webartigos.com. Disponível em:
http://www.webartigos.com/articles/12441/1/identidade-cultural-na-pos-modernidade/pagina1.html. Acesso em 17/06/2009.
SANTIAGO, Silviano. O narrador pó-moderno. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, s/d.
SANTOS, Jair Ferreira. O que é pós-modernismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
ANÔNIMO. A Página da Educação. Auto-determinação do Sujeito Pós-moderno. Disponível em http://www.apagina.pt/arquivo/Artigo.asp?ID=4529. Acesso em 30/05/2009.

[1]BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.p. 197.
[2] Idem. P. 201
[3] Ibidem. P.211.
[4] Ibidem. P. 211.
[5] Ibidem. P. 212.
[6] SANTIAGO, Silviano. O narrador pó-moderno.P.45.
[7] Idem. P. 52.
[8] Ibidem. P. 53.
[9] Ibidem. P. 54.
[10] Ibidem. P. 57.
[11] Ibidem. P. 57.
[12] HOISEL, E. C. S. . Literatura e biografia: a trama das relações., P.54.
[13] Idem. P.54.

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