sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Poema do Pessoa







Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente, fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para o pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo o correr do rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento -
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbulo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio.
Pagã triste e com flores no regaço.

(12/06/1914)

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domingo, 23 de agosto de 2009

Tentando responder a Djalma

O que significaria ver Kant como um "Hume prussiano"? Penso que "Hume" designa, sem maiores problemas, "empirismo", no sentido epistemológico clássico e lockeano da palavra: uma concepção de que o conhecimento humano começa (e se fundamenta) na experiência sensível. Mas, o que designaria "prussiano"? O antigo Reino da Prússia, situado no extremo leste alemão, se encontra, hoje, dividido entre a Polônia, a Lituânia e a Rússia. A cidade de Königsberg, onde Kant nasceu, viveu e morreu, é a atual Kaliningrado, uma cidade da Rússia. Pode ser que "prussiano" designe "linha dura" de certo "protestantismo prussiano", no qual Kant foi educado... Mas, neste sentido, Kant seria um "empirista prostestante de linha dura"? Enfim, como não consigo imaginar um "prussiano prostestante" defendendo a força das sensações e dos sentidos, um "Hume prussiano" afigura-se-me assim como uma espécie de oxímoro (rs rs). Quanto a ser Kant um idealista no sentido berkeleyano da palavra, não fica mais fácil explicar. O idealismo de Berkeley, elogiado por Schopenhauer (com a forte tese do véu de Maya, já comentado neste blog) consiste, grossíssimo modo, na defesa do slogan "esse is percipi", ou seja "ser é ser percebido". Pois bem: para Kant também, senão o "ser" (já que ele é crítico da ontologia), pelo menos os "fenômenos" (contrapostos à coisa em si) são sempre "percebidos". Ocorre que a percepção, para Kant, é entendida como uma "sensibilidade transcendental", cujas formas puras são o espaço e o tempo, que são as formas da sensibilidade humana. E, para Berkeley, Deus também (ou, principalmente) percebe. Para Berkeley, o que é perceptível inclui o que percebemos e o que Deus percebe. E nisso, Kant não segue Berkeley, pois, para Kant, a intuição sensível é humana, somente humana, embora não "demasiado humana", como diria Nietzsche. Sílvia Faustino.

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sexta-feira, 21 de agosto de 2009


Na leitura do prefácio da Crítica da Razão Pura, surgiu-me uma curiosidade que persiste. Diz o texto que, com a obra, Kant foi apontado por alguns como "Hume prussiano". Também que, "depois das recensões de Grave e de Feder, a doutrina na Crítica da Razão Pura [foi] identificada com o idealismo subjetivo de Berkeley". Acho que seria interessante saber os pormenores dessas comparações. (3ª página do prefácio)

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domingo, 16 de agosto de 2009

"Tempo narrado" e "tempo de narrar"

Em seu texto, Djalma identifica, no conto "Pai contra mãe", de Machado de Assis, certos aspectos gerais dos contos, que foram enfatizados por Julio Cortázar. Destes aspectos, vou destacar, para comentar livremente - e já sem remissões a Machado ou Cortázar -, apenas um: a questão do tempo nos contos. Benedito Nunes, em seu livro O tempo na narrativa, ensina que o tempo de uma narrativa só é mensurável sobre dois planos: o do discurso e o da história. Ou seja: o tempo deriva da relação entre o tempo de narrar (Erzählzeit) e o tempo narrado (erzählte Zeit), segundo distinção de Günther Muller. Assim, nos contos, o "recorte temporal" do tempo narrado é exigido também em função do tempo de narrar. Creio que essa equação explica também a relevância e a exigência da intensidade como elemento central dos contos. No entanto, há muito a se esclarecer acerca do "tempo narrado" e do "tempo de narrar" - pois, certamente, nem o primeiro se esgota no tempo cronológico dos fatos contados, nem o segundo se identifica ao ponto de vista estrito do narrador. Mas, além disso, aparece no texto de Djalma, uma concepção que poderíamos pôr em nosso horizonte para refletir e explorar: por que a poesia é atemporal? Em que sentido o tempo comparece nos poemas? São questões interessantes para se pensar. Abraços! Sílvia Faustino.

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terça-feira, 11 de agosto de 2009

Machado em Cortázar

Machado em Cortázar
(Apreciação do conto “Pai contra mãe” em face das idéias de Julio Cortázar)

Djalma Jacobina Neto

Machado de Assis é apreciado como um mestre contista do estilo clássico, como quer Hélio Pólvora. Ele segue, de uma maneira geral, esse padrão no que diz respeito ao ponto de vista (point of view), conflito de personagem (character conflit), problema decisão entre tantas outras regras das muitas elencadas por Pólvora em sua obra “Itinerários do Conto” no capítulo “Da arte e do estilo do conto”.

Mas não é com base nesse texto que teceremos algum comentário sobre a contística de Machado; tampouco será abordada toda sua obra. A apreciação será tão somente sobre alguns aspectos do conto Machadiano “Pai Contra Mãe” publicado no livro “Relíquias da Casa Velha” do mesmo autor, em confronto com o que escreveu Júlio Cortazar no capítulo “Alguns aspectos do conto” de sua obra “Valise de Cronópio”.

Cortázar, em seu texto, não fala sobre contos clássicos; aborda, pelo contrário, a versão mais contemporânea desse gênero. A confrontação de alguns aspectos por ele citados, com a escrita clássica de Machado, poderá mostrar as diferenças e semelhanças entre o quê, regra geral, se fazia no passado e o que se faz atualmente no universo dos contos.

De início, Cortázar fala de sua preferência pessoal que é o conto fantástico, subgênero da maioria de seus contos, e de sua confrontação com a realidade. Ele esclarece que tal estilo se opõe “ao falso realismo que consiste em crer que todas as coisas podem ser descritas e explicadas como dava por assentado o otimismo filosófico e científico do séc. XVIII”, isto é, ao que se conhece como “princípio da causalidade”. O conto de Machado vai, nesse aspecto, em sentido oposto, ou seja, é claramente tributário desse princípio, como se vê, por exemplo, nas escolhas feitas pelas personagens e suas posteriores conseqüências.

No seu texto, Cortázar, ao falar sobre o gênero conto, faz uma interessante aproximação desse com a poesia, ao declará-lo seu “irmão misterioso(...) em outra dimensão do tempo literário”. No texto de Machado, vemos isso em várias figuras de linguagem que buscam por imagens. Logo no início, há a passagem da justificativa do sentimento de propriedade que moderava a punição do escravo fujão: “dinheiro também dói”. Outras passagens seguem no mesmo sentido, como, por exemplo, ao citar os nomes dos protagonistas “Clara”, “Neves” e “Cândido” sugestivos de certa ingenuidade das personagens, todos dados a risos frouxos, alegres e descompromissados em face da aridez da vida. Também o filho, enquanto ainda por nascer, “deixava-se estar escondido na eternidade”. A “outra dimensão do tempo literário”, a que se refere Cortazar, diz respeito a atemporalidade da poesia, em confronto com uma possível datação devido ao “recorte” temporal exigido pelo conto. Machado não foge à regra; sua narrativa transcorre em um tempo certo, necessário á contextualização dos fatos.

Adiante, Cortázar faz a comparação do conto com uma fotografia. Da mesma forma que aquela, o conto também é, para ele, um fragmento da realidade “de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra (...) uma realidade muito mais ampla”. No conto em foco, Machado fez o referido recorte ao escolher um trecho vida de Cândido, com as desventuras de sua vida particular, para retratar um panorama muito mais significativo e amplo que é a crueldade da escravidão humana. É um tema que, em conformidade com o que ensina o comentador, é capaz “de atuar no (...) leitor como uma (...) abertura que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido (...) no conto”.

Cortázar faz ainda referência ao tema, à tensão e à intensidade de um conto. Quanto ao primeiro, ele entende que em literatura não há temas bons ou ruins, o que há são tratamentos bons ou ruins sobre esses. O tema da escravidão, por exemplo, é bastante corriqueiro, sobretudo na literatura da época machadiana. Lugares comuns e clichês abundam em obras que trataram do assunto. Machado foi sutil ao abordar essa temática por um viés completamente diverso do que era comum, com um episódio na vida de um “capitão de mato”. Além disso, adiante Cortázar afirma que “um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas, coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até idéias que lhe flutuavam virtualmente na memória ou na sensibilidade”. Veja-se que em “Pai contra mãe”, aglutina-se em torno do tema valores como igualdade, família, justiça, dignidade humana. Mas há uma ressalva feita pelo crítico que, também, não foge a Machado. Ele afirma que há uma aliança misteriosa e complexa entre certo escritor e certo tema num momento dado; ainda, que a significação de um tema é dada por algo que está antes e depois dele (do tema). Antes está o próprio escritor com todos seus atributos; depois está o tratamento literário dado ao assunto. Assim é que, em face da chaga da escravidão, Machado se sensibiliza e a ele anexa a questão do amor filial, fazendo, com isso, um paralelo entre duas vidas humanas (a do capitão do mato e a da escrava) em níveis de dignidade absurdamente diferentes, para mostrar com mais crueza a mazela social a que se refere.

Ao abordar as idéias de tensão e intensidade, Cortázar adverte que estes tópicos permitem uma aproximação à própria estrutura dos contos. È aí que, segundo ele, “se produz a distinção entre o bom e mau contista”. A intensidade “consiste na eliminação de todas as idéias ou situações intermédias, de todos os recheios ou fases de transição que o romance permite e mesmo exige”. Quanto a isso, destaca Hélio Pólvora (O itinerário do conto - Da arte e estilo do conto) que no conto deve-se dar preferência a mostrar a ação do que a narrá-la. A concisão de linguagem deve ser um atributo de um bom conto. No conto em tela, de Machado, um bom exemplo disso é a forma que foi descrita a relação de Cândido com suas diversas atividades profissionais; o autor não gastou mais que um curto parágrafo para esse fim.

Já a tensão “é uma intensidade que se exerce na maneira pela qual o autor vai nos aproximando lentamente do que conta”. A intensidade e a tensão formam o que Cortázar chama de “ofício de escritor”. Isso, segundo o crítico, é o que faz de um conto uma obra de arte. Por isso é que para ele um bom conto depende, além do fervor e da vontade de comunicar a mensagem, também de elementos expressivos, estilísticos que tornam possível essa comunicação. Nisso Machado foi um mestre, como se sabe.


Bibliografia:

ASSIS, Machado de. Relíquias de Casa Velha. Rio de Janeiro: Ed. Garnier, 1990, pp.17-27.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: Valise de cronópio. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1974, pp. 147-163.

PÓLVORA, Hélio. Itinerário do Conto: Interfaces Críticas e Teóricas da Moderna Short Story, Editora da Universidade Estadual de Santa Cruz, Ilhéus, Bahia, 2002.

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